ARTIGO ORIGINAL

Dispositivos de poder empregados por homens na violncia domstica contra a mulher: perspectiva de enfermeiros

Power devices employed by men in domestic violence against women: nurses perspective

Dispositivos de poder empleados por hombres en violencia domstica contra mujeres: perspectiva de enfermeros

Amarijo, Cristiane Lopes;[1] Silva, Camila Daiane;[2] Acosta, Daniele Ferreira;[3] Figueira, Aline Belletti;[4] Barlem, Edison Luiz Devos[5]

RESUMO

Objetivo: conhecer os dispositivos de poder empregados pelos homens na ocorrncia da violncia domstica contra a mulher, na perspectiva de enfermeiros da Ateno Bsica. Mtodo: pesquisa qualitativa com 20 enfermeiros de Unidades, cujas entrevistas foram gravadas, entre abril e junho de 2018, e tratadas por anlise textual discursiva sobre a tica foucaultiana. Resultados: emergiram as categorias: dispositivos no materiais constituda pela cultura e criao dos filhos, a naturalizao da violncia, a distino dos papis sociais e o medo; e dispositivos materiais composta pelo uso de substncias lcitas/ilcitas e dependncia financeira. Concluses: sob a tica dos enfermeiros, os homens utilizam dispositivos de poder materiais e no materiais dentro dos relacionamentos. Aes de enfrentamento da violncia no podem manter seu foco exclusivamente nas mulheres devido ao risco de permanecer irresoluta. Os homens precisam ser includos nas intervenes, pois a violncia domstica constitui uma das formas de exerccio desigual de poder.

Descritores: Violncia contra a mulher; Violncia domstica; Poder psicolgico; Sade de gnero; Prtica profissional; Enfermagem

ABSTRACT

Objective: to know the power devices employed by men in the occurrence of domestic violence against women, from the perspective of Primary Care nurses. Method: qualitative research with 20 nurses from Units, whose interviews were recorded, between April and June 2018, and treated by discursive textual analysis from the Foucauldian perspective. Results: the following categories emerged: non-material devices constituted by culture and raising children, the naturalization of violence, the distinction of social roles and fear; and material devices comprising the use of licit/illicit substances and financial dependence. Conclusions: from the perspective of nurses, men use material and non-material power devices within relationships. Actions to face violence cannot focus exclusively on women due to the risk of remaining unresolved. Men need to be included in interventions, as domestic violence is one of the forms of unequal exercise of power.

Descriptors: Violence against women; Domestic violence; Power, psychological; Gender and health; Professional practice; Nursing

RESUMEN

Objetivo: conocer los dispositivos de poder empleados por los hombres en la ocurrencia de la violencia domstica contra la mujer, en la perspectiva de las enfermeras de Atencin Primaria. Mtodo: investigacin cualitativa, con 20 enfermeros, por entrevistas entre abril y junio de 2018, y anlisis textual discursivo. Resultados: surgieron: dispositivos no materiales constituidos por la cultura y la crianza de los hijos, la naturalizacin de la violencia, la distincin de roles sociales y el miedo; y dispositivos materiales que comprenden el uso de sustancias lcitas/ilcitas y la dependencia financiera. Conclusiones: en la perspectiva de enfermeros, los hombres utilizan dispositivos de poder materiales e inmateriales en las relaciones. Las acciones para enfrentar la violencia no pueden enfocarse exclusivamente en las mujeres por el riesgo de quedar irresueltas. Es necesario incluir a los hombres en las intervenciones, ya que la violencia domstica es una de las formas de ejercicio desigual del poder.

Descriptores: Violencia contra la mujer; Violencia domstica; Poder psicolgico; Gnero y salud; Prctica profesional, Enfermera

INTRODUO

A Violncia Domstica contra a Mulher (VDCM), tambm conhecida como violncia de gnero, um constructo social que pe em evidncia as relaes de poder e se encontra arraigada na diferena entre papis sociais de homens e mulheres. Nela, o homem busca exercer poder sobre a mulher com inteno de domin-la e control-la.1 uma manifestao de relaes desiguais de poder entre homens e mulheres, fruto da educao machista que a sociedade patriarcal perpetua ao longo dos sculos.

O poder no representa algo que se possui ou no. um constructo scio-histrico que se exerce e s existe em ao.2 Exercer o poder significa agir sobre a ao do outro, sem necessitar de consentimento, sem renunciar liberdade ou transferncia de direitos. uma forma de influenciar o outros a agir da forma que se deseja, tendo-se uma inteno final.3

O desequilbrio do exerccio de poder nas relaes conjugais, que confere aos homens o papel de dominador e s mulheres de dominadas,1 muitas vezes, resulta na violncia contra elas. Essa distino social responsvel pela obedincia feminina ao homem, e pelo exerccio do poder masculino sobre a mulher.4

No imaginrio dos homens, a insubordinao das mulheres rompe com padres sociais da supremacia deles. Muitos homens se sentem possuidores das mulheres, acreditando ter controle sobre a vida de suas companheiras.5-6 Ao pensar a VDCM sobre a tica das relaes de poder, percebe-se que as formas de subordinao, s quais elas so submetidas, se tratam de dispositivos de exerccio de poder focados na violncia e na contnua conduo de condutas.2 Assim, o homem faz uso de dispositivos de poder para que a mulher possa agir da forma que ele deseja, obedecendo-lhe.

Os dispositivos se constituem nos meios utilizados para alcance do objetivo desejado em uma relao de poder. Eles designam a maneira pela qual o sujeito tenta ganhar vantagens sobre o outro, os meios que ele utiliza para privar o outro de suas armas de combate, a fim de que a luta lhe seja impossvel. medida que o sujeito avalia o alcance ou no de seu objetivo, ele pode substituir, excluir, rearticular os dispositivos que esto sendo empregados a fim de alcanar o que deseja.2

Nesse sentido, o agressor pode utilizar distintos meios para limitar o exerccio de poder da mulher, privando-a dos seus meios de resistncia e combate, levando-a gradualmente a estados de dominao em que a desistncia de lutar a consequncia mais imediata. Dificultando a reverso da situao vivenciada e levando-a a agir da forma que ele deseja, obedecendo-lhe e sendo submissa.

Analisar o poder nas relaes exige que sejam investigadas as estratgias de poder desenvolvidas, os dispositivos empregados pelo opressor.2

Nas relaes em que h exerccio de poder, no h uma vtima, mas sim uma pessoa que se encontra com menores chances de exerccio de poder devido a uma relao desequilibrada. Apesar das relaes de poder apresentarem um carter de opressor e oprimido, elas exibem uma diferena crucial entre os envolvidos na relao que a capacidade, a habilidade, a tcnica, o meio que utilizam para exercer seu poder sobre o outro de forma que este ltimo ao tentar exercer sua conduta no consiga ter o mesmo potencial que o outro e acabe mais sofrendo ao do que exercendo seu poder.3 A vitria de um dos sujeitos na relao de confronto s alcanada quando os dispositivos utilizados por um deles geram estabilidade constante da conduta do outro.2

Os dispositivos utilizados no exerccio do poder podem ser materiais ou no; dentre eles, destaca-se os sistemas de vigilncia, ameaa das armas, o controle do outro, coao por efeitos de palavras.7 Como instrumentos no materiais podemos considerar a violncia psicolgica e a moral que visam prejudicar a sade psquica da mulher. Cita-se, ainda, o constructo de papis sociais e a cultura, que moldam os padres de comportamento a partir da naturalizao do exerccio do poder desigual, de homens sobre mulheres. Quanto aos instrumentos materiais, pode-se considerar as formas de violncia fsica, sexual e patrimonial. As duas primeiras prejudicam diretamente a integridade fsica da mulher enquanto a patrimonial objetiva a destruio de seus bens materiais8 cujo objetivo pode ser a demonstrao de poder. O uso de substncias psicotrpicas, lcitas ou ilcitas, bem como a dependncia financeira da mulher so considerados dispositivos materiais de manuteno de poder.

Esses dispositivos de poder implicam na ocorrncia da violncia domstica. Destaca-se que quanto mais a mulher necessita de atendimento de sade, maior a probabilidade de ela estar envolvida em situaes de violncia domstica,1 sob ao desses dispositivos.

Mulheres em situao de violncia buscam com maior frequncia os servios de sade, principalmente os voltados para a ateno primria. Quanto mais a mulher necessita de atendimento de sade, maior a probabilidade de ela estar envolvida em situaes de violncia domstica.1

Acredita-se que a Ateno Bsica constitui a primeira opo das mulheres que sofrem violncia domstica, para garantia de sua proteo. Por distintas razes, essas mulheres nem sempre relatam a violncia sofrida, impedindo, assim, que o profissional de sade correlacione as leses observadas com a violncia domstica. Por vezes, essas mulheres so denominadas como poliqueixosas, devido a diversidade de sinais e sintomas biolgicos e psicolgicos.9

Ao procurar o servio, os enfermeiros devem acolher a mulher sem julg-la, de modo a transformar esse encontro em um momento de aproximao e escuta para que, possivelmente, as mulheres revelem que esto vivenciando violncia conjugal. durante o acolhimento que as mulheres devem receber os mais diversos tipos de orientaes que podero auxiliar no enfrentamento da violncia.1

Nessas oportunidades, a consulta de enfermagem apresenta-se como um instrumento fundamental deteco dos casos de violncia.9 Esses encontros devem constituir-se em espaos privilegiados de acolhimento, aproximao, escuta para que, possivelmente, as mulheres revelem que esto vivenciando violncia conjugal.

durante o acolhimento que os enfermeiros das Unidades Bsicas utilizam seus saberes para instrumentalizar as mulheres. Eles empenham-se a fim de criar condies para que elas possam modificar o cotidiano violento em que esto inseridas.10

Nessa ocasio, por vezes, as mulheres podem relatar a vivncia de violncia conjugal elucidando aos profissionais os dispositivos utilizados pelos companheiros para efetivao dessa. A partir da identificao do dispositivo utilizado pelo homem, o enfermeiro pode intervir de modo a auxiliar a mulher na transformao da realidade vivenciada a partir do exerccio do poder. Exposto isso, objetivou-se conhecer os dispositivos de poder empregados por homens na ocorrncia da violncia domstica contra a mulher, na viso de enfermeiros da Ateno Bsica.

MATERIAIS E MTODO

Trata-se de um recorte da pesquisa intitulada O exerccio da parrhesia por enfermeiros da Ateno Bsica no cuidado s mulheres em situao de violncia domstica, aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa local sob parecer 36/2018 e Certificado de Apresentao para Apreciao tica 81965918.5.000.5324.

Pesquisa qualitativa, descritiva, exploratria. Desenvolvida na cidade do Rio Grande/RS, localizada no extremo sul do Brasil, especificamente em suas Unidades Bsicas de Sade. Este municpio apresenta 29 Unidades de Ateno Sade, sendo nove Unidades Bsicas de Sade (UBS) e 20 Unidades Bsicas de Sade da Famlia (UBSF). Foram convidados a participar da pesquisa todos os enfermeiros atuantes nas Unidades de Sade do municpio do Rio Grande.

Contactou-se os enfermeiros de cada uma das Unidades de Ateno Bsica do municpio a fim de apresentar o projeto de pesquisa aos mesmos, esclarecendo os objetivos propostos, convid-los a participar das entrevistas, bem como, para o estabelecimento de horrios que estivessem em acordo com a disponibilidade de cada profissional que assentiu participao. Apenas 20 enfermeiros(as) aceitaram participar.

As entrevistas ocorreram entre abril e junho de 2018. Os critrios de seleo foram: Ser enfermeiro(a), atuar na Ateno Bsica, tempo de atuao na unidade de sade de, no mnimo, seis meses. O tipo de amostra foi no probabilstica intencional. Utilizou-se um roteiro semiestruturado. A entrevista foi gravada sendo o participante esclarecido acerca da importncia do gravador. Foram realizadas de forma individual, em sala apropriada, livre de interferncias, no local de trabalho dos participantes, em horrio acordado com ele(a), respeitando-se privacidade de cada um. Os udios foram transcritos na ntegra e inseridos no NVivo, um software que permite realizar anlises qualitativas. Para anlise dos dados utilizou-se a Anlise Textual Discursiva (ATD), sob a tica do referencial filosfico foucaultiano.

A ATD composta por trs etapas: unitarizao ou desmontagem dos textos, categorizao ou estabelecimento de relaes e captao do novo emergente. Essa forma de anlise cria espaos de reconstruo de significados dos fenmenos investigados. Utilizou-se como referencial filosfico Michel Foucault, pois para o autor o exerccio de poder algo difuso em todos os micro espaos, consistindo no agir sobre a ao dos outros sem necessitar de consentimento. Para tal, o homem faz uso de dispositivos de poder para que a mulher possa agir da forma que ele deseja, obedecendo-lhe.11

Os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, em duas vias, ficando um em sua posse e outra do entrevistador. Para garantir o anonimato dos participantes, utilizou-se letra maiscula da categoria profissional (E) seguida pelo numeral arbico sequencial.

RESULTADOS

Dispositivos no materiais

Nessa categoria so apresentados os dispositivos no materiais empregados pelos homens para manter assimtrico o exerccio do poder dentro das relaes conjugais. Dentre eles esto a cultura e a criao dos filhos em uma sociedade falocrtica, a naturalizao da violncia devido ao androcentrismo, o constructo da distino dos papis sociais e o medo.

A maioria dos enfermeiros referiu que a cultura e a criao dos filhos em uma sociedade machista so dispositivos utilizados pelos homens para manter o exerccio do poder, de forma desigual, nas relaes conjugais. Os enfermeiros, em seu cotidiano de trabalho, recebem mulheres que relatam terem sido obrigadas a manterem relaes sexuais como parte de suas atribuies de esposa.

Tem uma questo cultural, da sociedade inteira exaltar e colocar o homem como pai de famlia, responsvel, colocar como figura central da famlia, o que totalmente absurdo porque atravs da mulher que se consegue acessar o restante da famlia [...]acredito que o machismo ainda intrnseco, tanto nos pais, mes, mesmo jovens [...]. (E4)

[...] a questo da formao machista, a forma como esses homens foram criados, acho que isso interfere muito. s vezes no nos damos conta, mas mes de meninos so formadoras de opinio, elas que vo conduzir o comportamento deles. Muitas vezes, na criao, a me acaba influenciando e no percebe que est formando uns monstrinhos. (E9)

Acho que uma questo cultural, de eu mando, eu fao, eu posso, eu sou mais forte, eu sou o cabea, eu que dou a ltima palavra. (E14)

Para os enfermeiros, a naturalizao da violncia, a partir da vivncia da violncia intergeracional consequncia da sociedade falocrtica vivenciada ainda na atualidade. Presenciar situaes violentas com mulheres da famlia (mes, irms e at mesmo com avs) parece, de certa forma, contribuir para que a violncia de gnero permanea velada no interior dos domiclios, tornando-a constituinte das relaes familiares, contribuindo para a dessensibilizao das futuras geraes que descendero dessas crianas criadas em lares violentos.

Acho que a cultura, a criao, muitos deles foram vtimas de agresso, ou foram vtimas da agresso do pai contra a me, se criaram vendo que aquilo era natural. Aqueles xingamentos, aquela postura machista, o sexismo, acho que a criao, a cultura, a violncia que vivemos nesse mundo cruel, sem limites, sem valores, as pessoas no tm mais valores. Ento acho que a cultura sim, o ambiente, ele influencia muito. (E1)

[...]acho que voltado para criao, a questo de que foi criado num ambiente violento, na criao dele sempre presenciou que a mulher no precisa ter igualdade, cultural assim. (E3)

Percebe-se que a construo de gnero, com a distino de papis sociais, do que inerente a homens mulheres, foi exposta pelos enfermeiros como um dispositivo de poder legalizado e legitimado pela sociedade patriarcal, para uso dos homens que objetivam manter o poder sobre as mulheres.

Acho que naturalmente o homem foi criado como superior, tanto em fora fsica, quanto intelecto, temos uma sociedade machista. O homem sempre foi voltado para caa, para o recurso da famlia. A mulher para cuidar da famlia. Tanto que a mulher que deseja no ter famlia, no ter filhos, no considerada mulher. E o homem que no trabalha fora, que seja dono de casa, no considerado homem, no prov o sustento da famlia. Ento, acho que culturalmente criamos o homem para ser o alicerce, ele com esse poder, acredito que se sinta acima de tudo e de todos. [...]. (E3)

[...]vejo que vem muito da forma como somos educados e criados no ambiente familiar muitas vezes. Ento, crescemos com aquelas orientaes de que a mulher para isso, o homem para aquilo, existe a fora, ou ento mulher minha no pode fazer tal coisa, tem que ficar em casa bonitinha lavando, cuidando dos filhos e usam da fora fsica, muitas vezes, para exigir ou terminar com algum comportamento que no est de acordo com o que eles consideram correto. (E11)

O medo tambm foi mencionado como dispositivo de poder, no material, utilizado pelos homens para a manuteno assimtrica do poder. Para os profissionais, o medo utilizado pelo homem para manter a mulher subjugada, obediente aos seus mandos, sem contestao. Enquanto a mulher acreditar que o homem far tudo aquilo que ele narra, ela ficar sem reao, esttica, sem empenhar esforos para reequilibrar o poder. O medo pode estar relacionado com a transformao de sua vida que pode advir da denncia, caso realize. A mulher sente medo da independncia nunca vivenciada, da responsabilidade por sustentar sozinha os filhos, por ter que tomar decises por si prpria, medo por acreditar que no capaz de viver sem o algoz e de ser dona de sua vida.

Medo de sofrerem mais agresses, de no serem ouvidas, de no ter soluo. Acho que o maior fator o medo[...]. (E9)

Por medo, porque vemos at na televiso que no adianta ter medida protetiva, quando eles querem vo l matam pegam espancam, fazem o que querem e infelizmente assim mesmo, por que a medida protetiva quem est vigiando? A prpria mulher que vtima. [...]. (E10)

Acho que o principal o medo[...]muitas vezes o medo de denunciar e a isso servir de forma mais agressiva ainda, porque o homem vai se sentir ameaado e vai juntar essa fora que ele j usa contra a mulher para faz-la de forma maior ainda. (E11)

Medo. Acho que basicamente esse. Por que o que que o agressor faz? Ele ameaa. Se tu contar te mato. Se tu contar pego tua filha, tua me. Ento, a mulher acredita nisso, a mulher acredita e fica com medo. Acho que por isso que a mulher obedece. (E17)

Dispositivos materiais

Nessa categoria so abordados os dispositivos materiais empregados pelos homens dentro das relaes conjugais para manter assimtrico o exerccio do poder. Dentre eles esto: dependncia financeira e uso de substncias lcitas/ilcitas.

O efeito desencadeado pelos psicotrpicos sobre o sistema nervoso ocasiona alteraes de humor e conscincia, deixando o usurio desinibido e sem medo de cometer exageros. O consumo dessas substncias pode estar atrelado a desestrutura familiar. Por vezes utilizada para a fuga da realidade quer seja para negao dessa desestrutura, quer seja causadora dela.

[...]Hoje em dia o que acontece muito[...]os companheiros so usurios de drogas, ento eles j ficam com uma instabilidade no humor, j ficam com alterao, comea a droga causar alteraes neles. Ento, a maioria da violncia hoje em dia[...]est em torno do uso da droga. (E8)

[...]ele bateu nela, mas, ele usurio de lcool e drogas[...]. (E12)

[...]Geralmente so pessoas que usam algum tipo de droga, seja lcool ou outro tipo de droga. [...]. (E16)

[...]Acho que a falta de estrutura familiar a grande vil. muita droga. [...]. (E19)

A dependncia financeira ao agressor tambm um dispositivo de poder material utilizado pelos homens. Essa artimanha usada para manter a mulher destituda de poder, uma vez que, sem meios para se manter, ela necessita do companheiro para alimentar a si e a sua prole. O acesso a alguns programas sociais de renda e auxlios no foge da morosidade do sistema social atual, dificultando a sada da mulher da situao de violncia. Quando a mulher deseja realizar a denncia, esbarra na questo de no ter lugar para morar. Ela precisa contar com uma rede social que apoie e fornea subsdios necessrios como, por exemplo, um lugar para ficar e suprimentos para sua alimentao e de seus filhos at que ela consiga uma forma de se manter.

[...] mulher nenhuma tem que se sujeitar a finana do marido, do companheiro. Mas existem muitos casos assim. Honestamente num municpio, onde a gente tem uma taxa de desemprego muito grande, oportunidades de trabalho escassas, eu no vejo como sair de uma encurralada dessa. (E3)

[...] Claro que ela tem direito a penso, tem direito a tudo isso. S que um processo longo, demora. Geralmente no no primeiro ms. E, o que ela vai fazer nesse primeiro ms se no tiver apoio de familiares, amigos que possam manter ela? O posto tenta ajudar, mas no sei tambm qual seria a condio dela, com quem vai deixar os filhos para trabalhar, se consegue creche. um outro mundo, um outro universo bem mais complexo do que s a questo de sade. (E4)

complicado. Eu me coloco no lugar: ela vai na delegacia, d parte e depois para onde vai? Tem que voltar pra casa! difcil, quem que vai sustentar? Quem vai sustentar as crianas? No tem para onde ir, complicado. (E5)

[...]Qual o apoio que ela teria da famlia? Quem poderia ajudar ela? Porque tambm sair sem nada e no ter o que fazer e filhos, com dificuldade de alimentao, fica complicado. [...]. (E8)

[...] Elas tm que denunciar e se afastar deles, mas a eu tambm penso: como que essa mulher vai viver se ela no tiver uma possibilidade de ganho financeiro de outra maneira? buscar o apoio familiar se tiver. Pode ser que consiga, mas, s vezes, nem a realidade. s vezes ela, o marido e os filhos. (E11).

DISCUSSO

Os enfermeiros investigados referiram que os homens utilizam dispositivos de poder materiais e no materiais para manter o exerccio de poder dentro da relao conjugal. Como dispositivos materiais foram citados: dependncia financeira da mulher ao agressor e uso, por ele, de lcool e drogas. Em relao aos no materiais, a cultura e a forma de criar os filhos foram mencionados como dispositivos utilizados pelos homens. O uso desses dispositivos pode ocorrer de maneira inconsciente visto que a distino de papis sociais, bem como as incumbncias inerentes ao masculino e ao feminino parece estar inserido no imaginrio social. Pensar que atributos de gnero valorizam o homem em relao mulher, estabelecendo assimetrias de poder dentro das relaes1,4,12 considerar que essa construo sociocultural histrica atua como dispositivo de poder que acarreta um desequilbrio nas relaes afetivas conferindo ao homem um poderio legitimado por uma sociedade patriarcal.

Ao atribuir a uma pessoa funes e papis sociais de acordo com o seu sexo biolgico, se est separando em lados opostos homens e mulheres.13 Aos homens caberia, ento, realizar todos os atos perigosos, espetaculares, os papis pblicos, o poder, autoridade e chefia da famlia. mulher, o papel de obediente, procriadora, os afazeres domsticos, obedincia, subordinao, cuidados com o lar, educao dos filhos, atividades voltadas ao espao limitado e confinado do lar, trabalhos domsticos, privados e escondidos.1,14

Essa segregao resulta no estabelecimento das relaes de poder. O gnero no trata de diferenas biolgicas entre masculino e feminino, ocupa-se com relaes sociais estabelecidas entre ambos devido s construes culturais desse conjunto de convices acerca da masculinidade e feminilidade.6,14

A VDCM representa o resultado dos desequilbrios no exerccio do poder nas relaes conjugais que confere aos homens o papel de dominador e s mulheres, de dominadas1. Muitas vezes a violncia empregada como forma de manter a submisso feminina nas relaes matrimoniais.

O poder no pertence a algum tampouco constitui algo que se possui. S se exerce e s existe em ao.2 O exerccio do poder pode limitar ou ampliar o modo de agir do outro, consistindo em um conjunto de aes sobre aes possveis.3 Esse conjunto de aes denominado dispositivo de poder empregado para moldar a conduta do outro de tal forma que ele haja como se deseja.

O gnero constitui um dos lcus onde o poder articulado, contudo, no uma posio fixa imposta, mas uma forma de consolidar relaes de poder. A desigualdade de oportunidades de exerccio de poder nos distintos espaos sociais, bem como nas relaes afetivas leva a subordinao feminina aos mandos masculinos.14 Esta assimetria est relacionada com a distribuio desigual de poder entre o casal, o que pode desencadear situaes cujo risco de um dos envolvidos machucar e ferir gravemente o outro grande15 resultando em violncia.

Um estudo realizado com 384 adultos casados revelou a utilizao de estratgias de influncia entre os casais, justificadas pelos papis dos gneros. Elas so empregadas para obter resultados desejados. Verificou-se que as mulheres utilizam mais estratgias para influenciarem seus maridos. Mesmo quando parece haver simetria no exerccio de poder dentro das relaes conjugais, a autoridade do homem se sobressai em funo das decises cotidianas, ou seja, em virtude das questes de gnero e papis sociais.15

O exerccio do poder se encontra atrelado aos papis sociais. Os homens se utilizam de estratgias originrias desse constructo e as mulheres, por sua vez, empregam tticas que compensam esse desequilbrio de poder. O homem sabe que exerce o poder majoritariamente e isso acarreta que a mulher necessita utilizar mais as estratgias para reverter esse desequilbrio de poder.15

Ao pensar sob a tica de Foucault, a disciplinarizao e a punio so formas de produo de corpos dceis, ou seja, so dispositivos de poder utilizados para docilizar os corpos, manipular os sujeitos para que haja da maneira que se deseja. So meios de se moldar, de se modelar a conduta das pessoas. O sujeito , ento, treinado, adestrado para obedecer e agir da maneira que se deseja. dessa maneira que se fabricam os corpos dceis, obedientes.11

O poder disciplinar, ou disciplina, objetiva produzir corpos dceis e teis para que funcionem da forma que se deseja, porm no se trata de corpos que faam o que eles prprios desejam.8 No que concerne a VDCM, pode-se inferir que a disciplina comea desde o momento do nascimento ou talvez at antes. ensinada e aprendida, de forma natural, fazendo com que meninos e meninas incorporem as diferenas sexuais dos papis sociais.14

Foucault afirma a existncia de prticas que, arraigadas nas relaes de poder social, encontram-se orientadas disciplinarizao dos corpos.11 A maioria dos casos de violncia viril encontra-se fortemente relacionada com o fato de o agressor crer que a mulher no apresenta o padro de comportamento por ele considerado ideal.5,16 A partir da disciplina que se desenvolve o controle dos corpos bem como as atividades exercidas por eles.11 Entretanto, a disciplina no uma forma de dominao que restringe, pelo contrrio, ela o conduz a uma tal obedincia que o sujeito age como se fosse por iniciativa prpria.

Baseados na subalternidade e subservincia feminina, muitos homens adotam a violncia como uma forma de punir, de corrigir o comportamento considerado incorreto. O direito da mulher de decidir e fazer escolhas compreendido como um comportamento errneo que deve ser penalizado.16

Foucault refina a inexistncia da relao de poder sem resistncia e afirma que toda relao de poder implica, ento, pelo menos de forma virtual, uma estratgia de luta [...].2:248 No existe exerccio de poder sem possibilidade de luta, de reao, de contraposio de foras. A dominao no constitui a essncia do poder, porm toda estratgia de confronto almeja transformar-se em relao de poder que, por sua vez, sonha em tornar-se estratgia vencedora.2

O medo tambm foi referido como um dispositivo de poder no material empregado pelos homens para manter o desequilbrio do poder frente sua companheira. Ele pode estar relacionado com a necessidade de ter suas condutas aprovadas pelo companheiro, para que ele no a venha punir, muitas vezes, de forma mais severa.15 Muitas mulheres no denunciam seus agressores devido ao medo, a vergonha, a situao financeira, a dependncia emocional e afetiva, os papis sociais assumidos, o constrangimento de ter sua vida exposta, dentre outros.13,16 Ele impede que as mulheres busquem romper com o ciclo da violncia.

Os enfermeiros entrevistados citaram como um dos dispositivos de poder material utilizados pelos homens o uso de drogas psicoativas, lcitas e ilcitas. A drogadio altera as funes sensoriais dos usurios o que pode desencadear situaes de VDCM. O uso de drogas lcitas, em especial o lcool, consiste em um dos fatores que induzem a agresso.17-18 Em determinadas situaes, os efeitos que o lcool produz no organismo humano so utilizados para justificar o comportamento agressivo do homem sobre a sua parceira.4 Em relao s drogas ilcitas, a cocana e o crack, tambm so apontados como desencadeadores da violncia. Do mesmo modo que o lcool, o consumo dessas substncias tambm usado para explicar a conduta agressiva. Tanto drogas lcitas quanto ilcitas alteram os nveis sensoriais reduzindo as inibies promovendo, assim, a ocorrncia de violncia.4

Existem algumas situaes que proporcionam uns agirem sobre outros, nesse caso homens agirem sobre mulheres. Essas diferenas atuam como condies facilitadoras (ou no) para o exerccio do poder, podendo-se citar: diferenas econmicas e socioculturais e o status social.6 Apesar do grande percentual de famlias lideradas por mulheres, uma parcela significativa da populao brasileira acredita que o homem soberano da famlia. Essa situao, arraigada na viso de famlia patriarcal, confere ao homem o ttulo de chefe da famlia.5

Imperceptvel, muitas vezes, aos olhos femininos, a exigncia, pelo homem, de dedicao exclusiva dela ao lar, fazendo suas tarefas de mulher, constitui uma forma, sutil, de violncia. Essa modalidade de violncia se esconde, algumas vezes, sob a aparncia enganadora de segurana do status de mulher casada.15 Entretanto, algumas formas de controle no necessariamente so vividas como imposio, sendo aceitas pelas mulheres, que assim se sentem asseguradas nas suas identidades de mulher casada, pode-se citar aqui a dependncia financeira.

Para que as mulheres consigam romper o ciclo de violncia imprescindvel assegurar a elas a incluso no mercado de trabalho e condies de moradia alm da insero em diversos programas governamentais como: transferncia de renda, de acesso creche e/ou educao bsica, de habitao popular, dentre outros.19

Pensar que a mulher um sujeito livre seria uma contradio do ponto de vista que um sujeito algum que se sujeita ou est sujeitado a algo, porm Foucault2 afirma que mesmo sendo sujeito qualquer pessoa possui um campo de possibilidades para transformar condutas e comportamentos. Resgatando que o poder se encontra espalhado por todo campo social e que ele s se exerce sobre sujeitos livre, ento a liberdade tambm est em todos os lugares e pertence a todas as pessoas. Se no fosse assim, seria desnecessrio o exerccio do poder.

CONSIDERAES FINAIS

A VDCM no um fenmeno recente, possui um carter scio-histrico ideolgico que persiste no tempo. Atinge todas as faixas etrias, povos, culturas e classes sociais. Fundamentada nas desigualdades das relaes de poder, ela ocorre quando o homem exerce maior poder dentro da relao conjugal sendo denominada de violncia de gnero. Sua justificativa, muitas vezes, se camufla sobre a realizao de uma ao educativa ou punitiva para corrigir um comportamento da mulher considerado, pelo homem, como errneo.

Observou-se que, sob a tica dos enfermeiros, que os homens utilizam dispositivos de poder materiais e no materiais dentro das relaes afetivas. A cultura e a construo de papis sociais constituem dispositivos no materiais fortes para a modelagem da conduta feminina da maneira que o homem deseja. Eles utilizam-se de estratgias que levam as mulheres a agirem da forma como eles julgam ser correta. Contudo, essa influncia ocorre de maneira to sutil que a mulher nem percebe que seu comportamento est sendo moldado de tal forma a agir conforme o homem deseja, levando-a pensar que est agindo da forma que ela quer. Essa uma forma de manipulao, um dispositivo para o exerccio do poder.

O medo, dispositivo no material, pode estar relacionado com a crena de que o agressor pode lhe causar danos mais intensos caso ela o denuncie. Ele, por sua vez utiliza-se dessa artimanha para conseguir fazer com que a mulher aja da maneira que ele deseja e que acredita ser a correta. Porm, a transformao da realidade, por vezes, tambm gera medo nas mulheres. Medo de desfrutar de uma independncia nunca vivenciada, de serem donas de suas vidas, responsveis pelas suas escolhas, decises e criao dos filhos. Muitas mulheres sempre estiveram submetidas aos mandos de algum homem, primeiramente, o pai que mandava depois os maridos.

Quanto aos dispositivos de poder materiais, o uso de substncias psicotrpicas foi referido pelos participantes como sendo um dos meios que os homens utilizam para exercer o poder dentro da relao conjugal. Sob o pretexto que esto sobre o efeito da droga, eles violentam suas companheiras.

Ao analisar os dispositivos de poder citados pelos enfermeiros como sendo de uso dos agressores percebe-se que o desequilbrio no exerccio do poder dentro das relaes conjugais uma realidade que confere s mulheres posies de subordinadas em relaes aos homens. O entendimento dos enfermeiros acerca das relaes desiguais de poder entre homens e mulheres se configura como um instrumento capaz de contribuir para uma assistncia mais eficaz mulher em situao de violncia.

As aes de enfrentamento da violncia no podem manter seu foco exclusivamente nas mulheres devido ao risco de permanecer irresoluta. Urge que os homens sejam includos nas intervenes uma vez que a situao de VDCM constitui uma das formas de exerccio desigual de poder envolvendo-a e seu companheiro.

No desenvolvimento da pesquisa, encontraram-se algumas limitaes, como restrio territorial para a coleta de dados, a diminuta amostra de enfermeiros de uma nica regio no sul do Rio Grande do Sul, o pouco tempo de atuao profissional na Unidade de lotao em virtude de contratos temporrios para suprir a falta de profissionais. Salienta-se a importncia desse estudo, pois a produo cientfica, nacional e internacional, relacionada a temtica ainda reduzida ou at mesmo inexistente revelando a necessidade de maiores investigaes acerca dos dispositivos de poder utilizados pelos homens para manuteno da assimetria de poder dentro das relaes conjugais, na viso de enfermeiros da Ateno Bsica, em diferentes contextos, frente a situaes de VDCM de modo a contribuir para a transformao da realidade das mulheres que a vivenciam. Distintos resultados podem ser encontrados considerando-se outras realidades.

O conhecimento atrelado a experincia permite que o enfermeiro atue junto s mulheres, orientando-as acerca da violncia domstica em todas as suas nuances, sejam caractersticas, tipificao, locais de apoio ou sua historicidade.

AGRADECIMENTO

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior - Brasil (CAPES).

REFERNCIAS

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Recebido em: 01/04/2021

Aceito em: 30/11/2022

Publicado em: 14/12/2022



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Como citar: Amarijo CL, Silva CD, Acosta DF, Figueira AB, Barlem ELD. J. nurs. health. Dispositivos de poder empregados por homens na violncia domstica contra a mulher: perspectiva de enfermeiros. 2022;12(1):e2212120931. Disponvel em: https://revistas.ufpel.edu.br/index.php/JONAH/article/view/4257





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