Motivos que levam mulheres e homens a buscar as unidades básicas de saúde
Reasons that take women and men to seek the basic health units
Razones que llevan a mujeres y hombres a buscar las unidades básicas de salud
Gutmann, Victoria Leslyê Rocha;[1] Santos, Daniela dos;[2] Silva, Camila Daiane;[3] Vallejos, Carolina Coutinho Costa;[4] Acosta, Daniele Ferreira;[5] Mota, Marina Soares[6]
RESUMO
Objetivo: identificar os motivos que levam mulheres e homens a buscarem as unidades básicas de saúde. Método: estudo descritivo, qualitativo, realizado em oito Estratégias Saúde da Família. Participaram 32 pessoas, sendo 16 mulheres e 16 homens, entre o período de janeiro e abril de 2019. Utilizou-se entrevista semiestruturada para a coleta e Análise de Conteúdo para o tratamento. Resultados: homens e mulheres acreditavam que o sexo feminino procura mais em razão de sua fragilidade. O homem surgiu como responsável pelo cuidado de si e de outros, evidenciando uma possível mudança cultural. Conclusões: entende-se que os motivos e as percepções dos usuários são importantes para avaliar, reorganizar e fortalecer os serviços.
Descritores: Estratégia saúde da família; Gênero e saúde; Enfermagem
ABSTRACT
Objective: identify the reasons that lead women and men to seek basic health units. Method: descriptive, qualitative study, carried out in eight Family Health Strategies. 32 people participated, being 16 women and 16 men, between the period of January and April 2019. Semi-structured interviews were used for the collection and Content Analysis for the treatment. Results: men and women believed that the female sex seeks more because of its fragility. The man emerged as responsible for the care of himself and others, showing a possible cultural change. Conclusions: it is understood that the reasons and perceptions of users are important to evaluate, reorganize and strengthen services.
Descriptors: Family health strategy; Gender and health; Nursing
RESUMEN
Objetivo: identificar las razones que llevan a mujeres y hombres a buscar unidades básicas de salud. Métodos: estudio descriptivo, cualitativo, realizado en ocho Estrategias de Salud de la Familia. Participaron 32 personas, siendo 16 mujeres y 16 hombres, entre el período de enero a abril de 2019. Se utilizaron entrevistas semiestructuradas para la recolección y Análisis de Contenido para el tratamiento. Resultados: hombres y mujeres creían que el sexo femenino busca más por su fragilidad. El hombre emergió como responsable del cuidado de sí mismo y de los demás, mostrando un posible cambio cultural. Conclusiones: se entiende que las razones y percepciones de los usuarios son importantes para evaluar, reorganizar y fortalecer los servicios.
Descriptores: Estrategia de salud familiar; Género y salud; Enfermería
INTRODUÇÃO
O Sistema Único de Saúde (SUS) é o serviço de saúde mais acessível à população brasileira em geral e possui as unidades básicas de saúde, especialmente as vinculadas à Estratégia Saúde da Família (ESF), como locais de acolhimento e atendimento de homens e mulheres das mais variadas faixas etárias e classes sociais, tornando-se uma importante ferramenta de acesso e de assistência integral e humanizada aos usuários de saúde, principalmente no que se refere à prevenção de doenças e agravos e à promoção da saúde.1
As mulheres, desde 1930, possuem uma atenção especial voltada à sua saúde, nos mais diversos contextos, como planejamento reprodutivo, pré-natal, puerpério e prevenção do câncer de mama e do colo de útero. Os homens, por sua vez, passaram a ter uma Política voltada a suas demandas apenas oitenta anos depois, mais especificamente em 2009, quando foi implementada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), como forma de preencher o vácuo existente no âmbito das políticas de saúde,2 uma vez que, de modo geral, a ideia de cuidado com a saúde é associada à fragilidade e as unidades costumam ser identificadas como locais que privilegiam crianças, mulheres e idosos, havendo baixa adesão dos homens.3
Assim, além dos serviços ofertados nas unidades de saúde serem predominantemente não destinados ao público masculino, a estrutura, a organização, a decoração e a comunicação (como os cartazes e as campanhas) presente nesses ambientes são majoritariamente voltados à saúde da mulher, sendo, então, frequentados, em sua maioria, por tal gênero, o que pode explicar o receio por parte dos homens em buscar às ESFs. Portanto, os ambientes não favorecem a presença e permanência dos homens, pois se apresentam como espaços demarcadamente femininos, levando a invisibilidade dos homens e de suas necessidades nos serviços de saúde.4
Ainda, há de se considerar as questões de gênero, uma vez que a cultura patriarcal e machista presente na sociedade associa a ideia de virilidade aos homens, fazendo com que eles pouco procurem às ESF por não valorizarem o autocuidado presente nas ações de prevenção e de promoção da saúde. Enquanto o homem é caracterizado como um ser forte, que dificilmente adoece, buscando ajuda apenas para tratamento, as mulheres, historicamente, visam a prevenção e o cuidado consigo e com os outros, o que pode justificar a predominância feminina nesses locais.5-6 O autocuidado não é uma ação culturalmente comum dos homens, portanto, desenvolver estratégias para estimular os cuidados de saúde da população masculina ainda é visto como um grande desafio.7
É importante ressaltar que os homens têm uma menor expectativa de vida do que as mulheres, sobretudo por causas externas, em função de danos ocasionados por acidentes, tais como envenenamento, afogamento, queda, queimadura e aqueles relativos ao trânsito. Outro fator que contribui para a morbimortalidade masculina são as violências, incluindo os homicídios e os suicídios, por exemplo. Além disso, essa população está mais sujeita a desenvolver problemas cardiovasculares, neoplasias, doenças respiratórias relacionadas ao tabagismo e patologias do aparelho digestivo, as quais, frequentemente, são as causas de óbito desses indivíduos.8 Assim, considerando a população brasileira, 64,0% das mortes de pessoas do sexo masculino são por causas evitáveis.9
Portanto, os profissionais de saúde, em especial o enfermeiro, tem grande importância para que, em conjunto com o público masculino e a gestão dos serviços, construam espaços para discussão, reflexão e modificação da atual realidade, promovendo a saúde masculina e a qualidade de vida de toda sociedade por meio de ações e orientações que possam contribuir na adesão dos homens ao autocuidado nas unidades de saúde.10
Desse modo, entender o que pensam os usuários acerca do acesso aos serviços da atenção primária, bem como as justificativas que levam mulheres e homens a buscarem as unidades de saúde, pode auxiliar na implementação de ações inclusivas às necessidades dos usuários, especialmente dos homens, os quais ainda não possuem um espaço bem definido no SUS e nos serviços que o compõem. Assim, o presente estudo objetivou identificar os motivos que levam mulheres e homens a buscarem as unidades básicas de saúde.
MATERIAIS E MÉTODO
Estudo descritivo, com abordagem qualitativa, realizado em oito unidades de saúde ESF de maior demanda do município do Rio Grande, Rio Grande do Sul. Foram convidadas a participar quatro pessoas usuárias de cada unidade, sendo duas mulheres e dois homens, totalizando 32 participantes, 16 mulheres e 16 homens, que buscaram espontaneamente o serviço de saúde. Destaca-se que a secretaria de saúde do município disponibilizou uma lista com todas as 25 unidades de saúde vinculadas à ESF, de modo que foram selecionadas as oito primeiras, para se chegar ao total de 32 participantes, uma vez que 30 já seriam um quantitativo adequado em se tratando de entrevistas.11
As 32 pessoas participantes atenderam aos critérios de inclusão que eram ter idade igual ou superior a 18 anos e não possuir limitações cognitivas de fala, compreensão e audição. O critério de exclusão seria de todas as pessoas usuárias da ESF, não brasileiras, que buscassem a unidade de saúde em situação de emergência. Destaca-se que não houve nenhuma exclusão. As pessoas usuárias foram convidadas a participar após terem suas necessidades em saúde atendidas, sem prejuízo destas.
A coleta de dados ocorreu entre janeiro e abril de 2019 através de uma entrevista gravada, com o apoio de um roteiro semiestruturado com perguntas abertas, tais como “Por quais motivos você procura a unidade de saúde? Como você se sente na unidade de saúde?” e “Para você, homens e mulheres buscam a unidade pelos mesmos motivos? Se não, quais?”. Após a transcrição, os dados foram analisados pela Análise de Conteúdo proposta por Bardin, estruturada em três momentos – pré-análise; exploração do material; e tratamento dos dados obtidos, inferência e interpretação. A pré-análise é a fase da organização e sistematização das ideias, selecionando os materiais que serão submetidos à análise e formando hipóteses e objetivos. A exploração do material compreende a codificação, a decomposição ou a enumeração dos dados. O tratamento dos resultados obtidos, a inferência e a interpretação, baseiam-se em evidenciar os dados significativos subordinando-os a testes estatísticos e de validação.12
Em cada uma das ESF foi solicitado uma sala para realizar a coleta de dados, localizada em ambiente tranquilo e livre de ruídos e interferências. A entrevista, que durou cerca de 40 minutos, foi gravada após o consentimento dos participantes, respeitando o compromisso com a confidencialidade e anonimato. Os participantes foram identificados pela inicial P de “Pessoas”, seguido do número da ordem de realização da entrevista (P1, P2, P3...), além da caracterização se sexo Feminino (F) ou Masculino (M). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer nº 264/2018 e o certificado de apresentação para apreciação ética nº 03758918.1.0000.5324.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os 32 participantes do estudo tinham entre 20 e 71 anos, prevalecendo a faixa etária de 20 a 40 anos (62,5% para mulheres e 68,8% para homens). A cor autodeclarada que predominou foi branca (62,5% em mulheres e 75,0% em homens), seguida de preta (37,5% e 25,0%). Quanto à orientação sexual, 97,0% se declararam heterossexuais. No que se refere a escolaridade, 37,5% das mulheres possuíam ensino fundamental de escolaridade e outras 37,5% ensino médio, enquanto 62,5% dos homens possuíam o ensino médio de escolaridade. Do total de participantes, 50,0% das mulheres e 75,0% dos homens estavam empregados. A maior parte das mulheres (68,8%) e dos homens (75,0%) possuíam companheiro(a) e filhos (81,0%), sendo de um (35,0%) a dois (25,0%).
Quando questionados sobre os motivos que procuram as unidades de saúde, as pessoas usuárias, tanto os homens quanto as mulheres, relataram buscar a unidade por diversas razões, mas principalmente para a resolução de saúde de outros membros da família, como os filhos, o que significa que, na maioria das vezes, não estavam consultando ou solicitando serviços para si mesmos. Entre os serviços buscados estão: marcação de exames, vacinação, consulta e receita médica. Além disso, a unidade de saúde foi citada como um ponto de encontro e distração.
Eu venho mais por causa da minha filha. Ela tem bronquite [...] e agora está ruim da garganta e, antes que ataque, já trouxe. (P5-F)
Pelo meu filho, ele é especial, tem microcefalia, e geralmente a gente vem direto ao posto para marcar exames, consultas, vacinas e tudo mais. (P27-M)
Eu venho por causa dos outros. Do meu pai [...], meu filho [...] e a minha esposa. E eu, uma vez, tive ruim das costas e vim aqui. Uma única vez precisei de atendimento, fui bem atendido. (P11-M)
Por vários motivos, às vezes para buscar remédio, como agora, trazer a minha filha para uma consulta [...]. Às vezes por saúde ou para espairecer um pouco, conversar, tem gente que vem com chimarrão para tomar aqui na volta, encontrar vizinhos, dialogar. As médicas são bem atenciosas, as enfermeiras também, são bem-queridas. (P1-F)
Nesta pesquisa, foi possível visualizar o homem responsável pelo cuidado, exercendo a paternidade e se aproximando do serviço. O homem como sujeito de cuidado e potencial cuidador é invisibilizado tanto na literatura quanto pelo setor de saúde, atrelando essas características exclusivamente à mulher.13 Assim, o homem também compartilha com a mulher o cuidado familiar, mesmo que em outras pesquisas ainda seja presente nos seus discursos a falta de tempo para procurar os serviços de saúde devido ao trabalho, percebendo-se que, paradoxalmente, conseguem tempo para buscar por cuidados para seus filhos ou esposa nas unidades de saúde.2
Identificou-se, nesse estudo, que os participantes acreditam que os homens e as mulheres não buscam a unidade pelos mesmos motivos, concordando que elas buscam mais as unidades de saúde. Entre as justificativas, os participantes destacaram o estabelecimento de uma relação entre cuidado e as características sociais impostas ao feminino, ou seja, as mulheres foram elencadas como as que mais facilmente procuram esses serviços, uma que vez foi associado ao seu corpo biológico a fragilidade, em especial quando relacionado à maternidade.
Eu acho que a mulher tem uma tendência muito mais de ser cuidadosa com ela, acredito que há muito mais mulheres que procuram atendimento para qualquer tipo de situação do que os homens. (P17-M)
Eu acho [...] que o homem é mais descuidado com a saúde. Então, a mulher está com uma dor de cabeça, vem aqui, o homem toma remédio em casa. Talvez eles procurem quando estão bem gripados ou se estão precisando mesmo. A mulher é mais aquela coisa de “qualquer coisa me leva ao médico". (P20-F)
[...] Poucos homens procuram a unidade, eu acho. Às vezes o homem busca por motivos bobos. E as mulheres, como o corpo da mulher é mais sensível, gera mais problemas do que o homem. (P3-M)
[...] As mulheres vêm mais no posto do que os homens. Mulher tem mais problemas, tem filho. (P30-M)
Ao entender o corpo feminino como frágil, esse carece, assim, de mais atenção e cuidado.13 Uma pesquisa realizada em Brasília com o objetivo de identificar os fatores que dificultavam a procura pela população masculina aos serviços de Atenção Primária, constatou que 363 homens (94,5%) acreditavam que são as mulheres que buscam mais os serviços primários de saúde, por perceberem a mulher como mais cuidadosa, preocupada e consciente com a própria saúde, bem como frágil e vulnerável às doenças.6
Por sua vez, o homem apresenta uma preocupação mínima com sua saúde, de forma que tal realidade se modifica perante as limitações advindas com o envelhecimento fisiológico, impulsionando o homem idoso a buscar o serviço de saúde, uma vez que a fragilidade inerente à senescência se sobrepõe à crença da invulnerabilidade masculina.14 Dentre as justificativas que levam os homens, participantes deste estudo, a buscarem menos as unidades de saúde, verificou-se que o adulto jovem, em idade produtiva, referiu o desleixo com a saúde, procurando apenas em situações consideradas graves. O autocuidado e a prevenção de doenças ou agravos foi citado como algo pouco valorizado pelos homens.
A minha mulher vem seguido aqui, traz as minhas gurias, eu é raro, é mais quando eu me acidento. (P16-M)
Não, nunca fui ao médico. Só em emergência. E só vim nesse aqui porque apertou a pressão mesmo, me senti mal. (P4-M)
Eu acho que falta muito aquela coisa de cuidado com a saúde, tanto a física quanto a mental. Acho que 90% procuram quando está com algum quadro agudo e principalmente físico, que é a visão que se tem do que a Unidade oferece, que é o atendimento clínico físico. Acho que a maioria procura assim, em um quadro agudo, e não preventivamente. (P9-F)
Eu acho que o homem evita ir ao médico hoje em dia, só vai quando precisa muito mesmo, mas acho que quem procura mais são as mulheres e pessoas mais idosas, depois de uma certa idade a gente vê bastante senhores aqui, mas homens mais jovens acho que eles não têm muito uma visão de procurar auxílio, assistência à saúde. (P23-F)
Como dos homens, historicamente, se espera uma superioridade, esses acabam por buscar a unidade em situações extremas de emergência ou de urgência, ignorando a importância da prevenção de doenças mesmo quando estão cientes da sua necessidade.9 A exposição de fatores culturais permeados pelos estereótipos de gênero representa um risco comportamental à saúde, de modo que os homens, em sua maioria, tendem a desvalorizar as práticas de prevenção e cuidados com a saúde, elevando a vulnerabilidade a agravos e doenças.15
Os usuários, especialmente do sexo masculino, se queixaram da espera para o atendimento, por outro lado verificou-se que o vínculo é estabelecido através do atendimento integral e humanizado.
Faço consultas de rotina aqui. [...]. Às vezes eu me sinto bem, às vezes eu me sinto, como é que eu vou te explicar... de ficar esperando muito, tem um que chega na frente que tem aquela vantagem [...] já me aconteceu de chegar aqui nove horas da manhã, com três ou quatro na minha frente e eu fui atendido quase meio dia, e o enfermeiro do posto, não vou citar nomes, disse que eu tinha que voltar uma hora da tarde de novo, como é que eu vou voltar uma hora da tarde de novo se eu estou aqui desde às nove horas? (P6-M)
Todas as questões de saúde que aparecem é o recurso que tenho. Acho que sempre fui e sou muito bem atendida. Já cheguei fora do horário e não me foi negado o atendimento. Às vezes eu venho e digo quero uma consulta com a enfermagem porque eu não estou muito bem, quero conversar um pouquinho com tal técnico que já me conhece, sabe da minha história. (P9-F)
A impaciência de homens para esperar o atendimento também foi constatada em outras pesquisas, dificultando a busca por atendimento e a formação do vínculo com a unidade.16-17 Essa inquietação leva, muitas vezes, à desvalorização do serviço público.
Eu vim aqui só para ver um exame que tenho que marcar [...] a pessoa tem que esperar demais, eles não dão muita atenção, não explicam, [...] a pessoa paga impostos por isso e paga bastante, até bem caros, e o pessoal não é bem atendido nesses lugares públicos, tu és bem atendido no lugar que é privado, lugar público acho horrível, particularmente. (P30-M)
Em contrapartida, outros usuários reconheceram a importância do serviço que, mesmo com dificuldades, consegue ser acessível e resolutivo, prestando diversos serviços, como o pré-natal e a consulta odontológica.
Motivo de saúde, uma gripe [...]. Eu gosto, tem muita gente que reclama do posto e a gente tem que ser consciente que nós estamos em um país quebrado, em uma crise enorme. [...] ter um postinho assim é um luxo. Ela [esposa] faz o pré-natal aqui, dizem que tem até dentista [...]. A gente vive de aluguel, só eu trabalho, agora ela está grávida, fazer um pré-natal particular é muito caro. Aqui tem tudo, toda assistência, então acho que é luxo. O pessoal reclama, acha que está ruim porque é mal-acostumado [...]. Tem tudo de graça, “eu pago imposto”, mas aí se tu for olhar o lado ruim, não vai a lugar nenhum [...]. (P14-M)
A ampla rede de atenção à saúde, construída ao longo dos 30 anos do SUS, atende às necessidades da maior parte da população brasileira, contribuindo para a melhoria das condições de vida e na redução de iniquidades e desigualdades. Os resultados seriam mais profundos se não fossem os impasses estruturais, fortes limites organizacionais e financeiros que impedem a plena realização de seus fundamentos.18
Isto se expressa com clareza quando se analisa a estrutura do financiamento, pois são investidos cerca de 9% do Produto Interno Bruto na área da saúde, mas desse valor apenas 46% correspondem ao gasto público, ou seja, a maior parte das despesas em saúde onera o orçamento das famílias e empresas. A falta de prioridade ao SUS e os ataques visando o seu desmonte, como a Emenda Constitucional 95 que congela o orçamento público durante 20 anos, dificultam sua consolidação, de modo que existe, atualmente, pouco investimento público e muito interesse privado nessa problemática. Além disso, esse quadro de subfinanciamento subjuga as necessidades de saúde da população às metas fiscais, descaracterizando o SUS.18-19
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os depoimentos analisados evidenciam que a busca pela unidade de saúde se dá por diversos motivos, nem sempre pelo atendimento de si, mas principalmente de outros membros da família, pela busca por medicamentos e pelo tratamento de determinado agravo ou doença, bem como pela socialização através do contato e diálogo com a equipe de saúde, reforçando como as ESF fazem parte da vida e cotidiano dessas pessoas.
As pessoas usuárias, tanto do sexo feminino quanto masculino, acreditam que os homens e as mulheres não buscam a unidade pelos mesmos motivos e justificaram que as mulheres buscam mais as unidades de saúde para o autocuidado e para a prevenção, em razão de seu corpo biológico mais frágil. Ao passo que os homens buscam menos as unidades, sendo motivados apenas pelo agravo do seu estado de saúde, afastando-se de práticas preventivas de doenças e promotoras de saúde. Percebe-se que entre as pessoas usuárias da atenção básica, seja do sexo biológico feminino ou masculino, ainda perdura as concepções sociais e históricas dos papeis de gênero, construídos culturalmente.
Nessa pesquisa, identificou-se o homem como responsável pelo cuidado de si e de outros, evidenciando uma mudança cultural importante referente às relações de gênero. Verificou-se que o homem adulto jovem, na faixa etária economicamente ativa, apresenta certo desleixo com sua própria saúde, procurando apenas em situações consideradas graves. Enquanto, ao longo dos anos, com a senescência, os homens passam a procurar com mais frequência os serviços, para além da resolução de quadros agudos, mas também para adesão às práticas preventivas de doenças e promotoras da saúde. Também os homens se mostraram mais impacientes e irritados com a falta de resolutividade na assistência, especialmente pela demora no atendimento, desqualificando o serviço público, podendo ser justificativa para o absenteísmo alto desse público. Porém, também esteve presente a valorização e defesa da unidade de saúde.
Ainda que os motivos da procura pela unidade de saúde tenham se imbricado com as crenças de gênero e à qualificação dos serviços, considera-se que esses são aspectos relevantes para os participantes e que, consequentemente, possuem relação com a busca ou não pelas ESFs, uma vez que foram espontaneamente levantados pelos homens e mulheres usuários das unidades. Assim, apesar das limitações do estudo, em ter sido realizado em um único espaço geográfico e cultural, entende-se que os motivos que levam os usuários a procurarem os serviços de saúde, bem como suas opiniões e percepções são ferramentas importantes para avaliar os serviços, reorganizar as ações dos profissionais de saúde e fortalecer o SUS.
Por fim, a equipe de saúde, especialmente o enfermeiro, pode contribuir na desconstrução dessa masculinidade vigente que reforça a invulnerabilidade masculina, mas que, no fim, gera agravos à saúde do homem e daqueles que o cercam. Acredita-se que essa cultura pode ser superada com a adoção de práticas preventivas e de promoção à saúde que sejam atrativas ao público, especialmente ao homem, conquistando uma assistência integral e humanizada, conforme preconizado na PNAISH.
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Recebido em: 27/03/2021
Aceito em: 11/02/2022
[1] Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Rio Grande, Rio Grande do Sul. Brasil (BR). E-mail: victorialeslye@gmail.com ORCID: 0000-0002-3457-7620
[2] Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Rio Grande, Rio Grande do Sul. Brasil (BR). E-mail: danny26santos@gmail.com ORCID: 0000-0002-0924-0401
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[4] Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Rio Grande, Rio Grande do Sul. Brasil (BR). E-mail: coutinhocarolc@hotmail.com ORCID: 0000-0002-1093-5366
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Como citar: Gutmann VLR, Santos D, Silva CD, Vallejos CCC, Acosta DF, Mota MS. Motivos que levam mulheres e homens a buscar as unidades básicas de saúde. J. nurs. health. 2022;12(2):e2212220880. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/20880
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