ARTIGO de atualização

Política de saúde mental brasileira: uma análise a partir do pensamento de Franco Basaglia

Brazilian mental health policy: an analysis based on Franco Basaglia thought

Política brasileña de salud mental: un análisis basado el pensamiento de Franco Basaglia

Kantorski, Luciane Prado[1]; Cardano, Mario[2]; Antonacci, Milena Hohmann[3]; Guedes, Ariane da Cruz[4]

Resumo

Objetivo: analisar a política pública de saúde mental brasileira à luz do pensamento de Franco Basaglia. Método: estudo qualitativo, que utiliza a análise documental de relatórios das conferências nacionais de saúde mental, da legislação brasileira relacionada à saúde e das principais portarias relativas à área de saúde mental até 2019. Resultados: o pensamento de Basaglia acerca da extinção dos manicômios e da criação de novos serviços territoriais de cuidado de saúde mental foram estímulos importantes na construção política e na organização dos serviços territoriais, substitutivos ao manicômio, no Brasil. Neste período, a reforma psiquiátrica brasileira tem enfrentado desafios, mas também tem produzido importantes avanços na implantação de uma ampla rede de serviços territoriais, apesar de ainda não ter extinguido os manicômios. Conclusões: a análise permitiu reafirmar os pontos de força alcançados até aqui, bem como avançar na crítica e no redimensionamento de horizontes da política de saúde mental brasileira.

Descritores: Saúde mental; Serviços comunitários de saúde mental; Reforma dos serviços de saúde

ABSTRACT

Objective: to analyze Brazilian public policy in the light of Franco Basaglia's thinking. Method: qualitative study, which uses documentary analysis of reports from national mental health conferences, Brazilian legislation related to health and the main ordinances related to the mental health area until 2019. Results: Basaglia's thought about the extinction of asylums and the creation of new territorial mental health care services, were important stimuli in the political construction and organization of territorial services, replacing the asylum, in Brazil. During this period, the Brazilian psychiatric reform has faced challenges, but it has also produced important advances in the implantation of a wide network of territorial services, although it has not yet extinguished asylums. Conclusions: based on the analysis, it was possible to reaffirm the strength points reached so far, as well as to advance in the criticism and in the resizing of horizons of the Brazilian mental health policy.

Descriptors: Mental health; Community mental health services; Health care reform

RESUMEN

Objetivo: analizar la política pública brasileña a la luz del pensamiento de Franco Basaglia. Método: estudio cualitativo, con análisis documental de informes de congresos nacionales de salud mental, legislación brasileña y las principales ordenanzas relacionadas con el área de salud mental hasta 2019. Resultados: pensamiento de Basaglia sobre la extinción de los asilos y la creación de nuevos servicios territoriales de salud mental, fueron estímulos importantes en la construcción política y organización de los servicios territoriales, en sustitución del asilo, en Brasil. Durante este período, la reforma psiquiátrica brasileña ha enfrentado desafíos, pero también ha producido importantes avances en la implantación de una amplia red de servicios territoriales, aunque aún no ha extinguido los asilos. Conclusiones: a partir del análisis, fue posible reafirmar los puntos de fuerza alcanzados hasta el momento, así como avanzar en la crítica y en el redimensionamiento de horizontes de la política brasileña de salud mental.

Descriptores: Salud mental; Servicios comunitarios de salud mental; Reforma de la atención de salud

INTRODUÇÃO


Este artigo apresenta uma discussão acerca da política pública de saúde mental brasileira, a partir da análise de documentos das conferências nacionais e da legislação brasileira, tendo como referencial de análise o pensamento de Franco Basaglia.

Os movimentos de transformação na psiquiatria que ocorreram na Europa e nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial tiveram importante influência nas mudanças na saúde mental no Brasil. No entanto, a psiquiatria democrática italiana, oriunda das experiências de Franco Basaglia e seu grupo em Gorizia e Trieste, é que influencia fortemente as transformações nas práticas e na política de atenção em saúde mental no Brasil.1

Após a Segunda Guerra Mundial, a forte crítica ao manicômio é materializada em dois grandes polos de proposições reformistas: movimentos de crítica à estrutura asilar abarcando as reformas circunscritas ao interior do hospício como a psicoterapia institucional (na França) e as comunidades terapêuticas (nos Estados Unidos e na Inglaterra); e, posteriormente, a psiquiatria de setor (França) e a psiquiatria preventiva ou comunitária (Estados Unidos) que propõem reformas que extrapolam o espaço do manicômio e introduzem a psiquiatria no espaço público com o novo objeto, a saúde mental.1,2

Basaglia3 afirma que as experiências inglesa e francesa foram propostas pelos trabalhadores dos serviços de saúde mental, enquanto, a originalidade da experiência italiana foi de ser produzida pelos movimentos sociais e políticos, apesar de inicialmente ter sido formulada por trabalhadores “não se contentou com uma ciência reciclada”3:92 configurando-se num processo que atravessa a cultura manicomial.

Franco Basaglia, psiquiatra italiano, nasceu em Veneza em 11 de março de 1924 e morreu aos 56 anos, em 29 de agosto de 1980 de adenocarcinoma etmoidal com invasão da base craniana e metástases vertebrais. Era casado com Franca Basaglia desde 1953, que integrou sua equipe e com quem produziu muitos dos seus escritos. Depois de treze anos de trabalho na Universidade de Pádua, em 1961 foi diretor do hospital psiquiátrico de Gorizia, onde deu início a uma experiência de abertura do manicômio apresentada em dois livros: Che cos’è la psichiatria? (1967)4 e L’istituzione negata (1968).5 Durante um ano, em 1970, ele dirigiu o hospital psiquiátrico em Parma, mas a experiência foi finalizada em meio a disputas políticas, e no final do ano seguinte ele passou a dirigir o hospital psiquiátrico de Trieste, onde deu seguimento a seu projeto para fechá-lo e criar um novo sistema de serviços de saúde mental no território.6-8

Em 13 de maio de 1978, o Parlamento Italiano aprovou uma transformação do sistema psiquiátrico, por meio da Lei 180 que previa a extinção dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por serviços territoriais. Esta experiência inédita impulsionou vários outros países a desencadear processos desinstitucionalizantes, inclusive o Brasil que apesar de não ter extinguido o manicômio, teve sua Lei 10.216 de reforma psiquiátrica aprovada em 2001, e produziu uma importante reforma do sistema psiquiátrico com redução de leitos nos hospitais psiquiátricos e criação de serviços de saúde mental na comunidade.6,7,8

A revista Lancet em 2007 lançou uma série de artigos revendo evidências epidemiológicas sobre disponibilidade de recursos, intervenções e estado de desenvolvimento de sistemas de saúde mental. Dos 152 países de média e baixa renda, as melhorias eram poucas, sendo evidenciadas como bem-sucedidas as experiências do Brasil, Chile e Sri Lanka.9

A mudança na política, na prestação de cuidados, na expansão da mão de obra na saúde mental, no acesso a psicofármacos e aos serviços comunitários resultou em uma grande reforma do setor no contexto brasileiro. No entanto, a distribuição desigual de serviços nas diferentes regiões e o fato do governo não ter aumentado o montante de recursos para área, constituem-se em importantes limites na política.10

Os processos da reforma psiquiátrica italiana e brasileira ocorreram em contextos históricos e culturais distintos, no entanto, o impacto das transformações ocorridas na Itália pode ser sentido ainda hoje no contexto da atenção em saúde mental brasileira. A Política Nacional de Saúde Mental no Brasil, apesar de não ter conseguido extinguir todos os leitos nos hospitais psiquiátricos como ocorreu no processo italiano, reduziu significativamente a compra destes, e foi consolidando uma rede diversificada e ampla de serviços de saúde mental que, não sem dificuldades, tem redirecionado a assistência psiquiátrica no país.

No período entre 2006 à 2010 houve uma maior redução leitos em hospitais psiquiátricos, sendo fechados 6.832. Com relação ao investimento os dados do Ministério da Saúde demonstram que o ano de 2006 marca uma virada histórica na atenção em saúde mental no país, pois pela primeira vez, os gastos federais extra-hospitalares do Programa de Saúde Mental ultrapassaram os do Programa com hospitais, mostrando uma reorientação do financiamento. 11,12

Até o ano de 2015 verificou-se a ampliação do acesso ao cuidado fora do manicômio e o investimento e valorização dos serviços extra-hospitalares. Contudo, atualmente o movimento dos governos tem sido no sentido oposto, ampliando o financiamento dos hospitais psiquiátricos, reduzindo o cadastramento de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), restaurando a centralidade do hospital psiquiátrico, ao recomendar a não utilização da palavra 'substitutivo' (ao hospital psiquiátrico) para designar qualquer serviço de saúde mental.12

Inserido neste contexto, este artigo tem o objetivo de analisar a política pública de saúde mental brasileira a luz do pensamento de Franco Basaglia, considerando que esta pode contribuir para reafirmar os pontos de força, permitindo avançar na crítica e no redimensionamento de horizontes da política.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, que utiliza a análise documental13 para apresentar uma leitura crítica dos avanços e limites da política pública de saúde mental brasileira, com base no pensamento de Franco Basaglia.

Os documentos analisados são os relatórios das 4 conferências nacionais de saúde mental14-17 realizadas entre 1987 e 2010, a legislação brasileira relacionada a saúde as principais portarias relativas à área até 2019.18-20

A definição pelos documentos como relatórios de conferências nacionais de saúde mental se justifica pelo fato do Sistema de Saúde brasileiro ter esta particularidade organizativa de contar com instâncias colegiadas de representantes dos vários segmentos sociais (conselhos da área da saúde, associações de usuários e familiares, prestadores, governos e entidades da sociedade civil) com a finalidade de avaliar e propor diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis municipais, estaduais e nacional.

As conferências de saúde se iniciaram cumprindo o disposto no parágrafo único do artigo 90 da Lei n.º 378, de 13 de janeiro de 1937.21 A Lei n.º 8.142 de 28 de dezembro de 1990 estabelece que as conferências devem contar, necessariamente, com a participação dos movimentos sociais organizados, das entidades ligadas à área da Saúde, dos prestadores de serviços de saúde e dos gestores. Suas deliberações devem servir para orientar os governos na elaboração dos planos de saúde e na definição de ações prioritárias constituindo-se um espaço democrático privilegiado de participação da sociedade civil para garantir os interesses da população.22

A escolha do segundo conjunto de documentos em análise, as leis, decretos e portarias normativas e regulamentadoras se deve ao fato de representarem um dos mecanismos que o Estado se utiliza para viabilizar a operacionalização das políticas.

Para produzir a análise documental, partiu-se da categoria da contradição amplamente trabalhada nos livros que difundem o pensamento de Franco Basaglia e particularmente na coletânea de textos transcritos a partir das conferências que proferiu nos meses de junho e julho de 1979, em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, pouco antes de sua morte em 29 de agosto de 19803-5. Em suas obras, Basaglia afirma que viver dialeticamente as contradições do real é o aspecto terapêutico do trabalho em saúde mental, e que se tais contradições forem enfrentadas dialeticamente é possível abrir possibilidades e alternativas de rompimento com o aparato manicomial.5

Os resultados apresentados fazem parte da pesquisa “A constituição de práticas sociais desinstitucionalizantes no contexto brasileiro e italiano” aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, parecer 750.144 de 13 de agosto de 2014.

RESULTADOS

Os resultados que seguem estão dispostos em dois quadros contendo a matriz de análise documental com as conferências nacionais (Quadro 1), e outro com a matriz de análise documental da legislação (Quadro 2).

Quadro 1: Matriz de análise documental – conferências nacionais

Conferência

Data/Local/

Participantes

Eixos

Destaques

I Conferência Nacional de Saúde Mental. Relatório Final.

25 a 28 de junho de 1987.

 

Rio de Janeiro

 

176 delegados

 

 

Economia, sociedade e Estado: impactos sobre saúde e doença mental;

Reforma sanitária e reorganização da assistência à saúde mental;

Cidadania e doença mental: direitos, deveres e legislação do doente mental.

Evidencia o impasse do modelo assistencial centrado no hospital psiquiátrico e predominantemente baseado no modelo médico-psiquiátrico, considerado ineficaz e oneroso para os usuários e a sociedade, violando os direitos humanos fundamentais dos usuários.

Destaca a defesa dos direitos das pessoas com transtornos mentais e a necessidade de superação do modelo hospitalocêntrico e traz recomendações para a constituição de um modelo assistencial extra hospitalar e comunitário.

II Conferência Nacional de Saúde Mental: reestruturação da saúde mental no Brasil.

Relatório Final.

1 a 4 de dezembro de 1992.

 

Brasília.

 

500 delegados e 320 observadores. Foram 24 conferências estaduais e 150 municipais ou regionais. Aproximadamente 20.000 pessoas participaram nas diversas etapas preparatórias da conferência.

 

Rede de atenção em saúde mental,

Transformação e cumprimento de leis,

Direito à atenção e direito à cidadania.

 

A participação significativa do segmento dos usuários e seus familiares, pela primeira vez em na história brasileira, de modo expressivo. A II Conferência não só aprofundou as críticas ao modelo hegemônico, como também formalizou o esboço de um novo modelo assistencial.

Aprofunda a crítica ao asilamento psiquiátrico, a partir da adoção de novos referenciais ético-políticos, também através das experiências locais acumuladas e do fortalecimento e da organização do movimento social em torno da aprovação da lei da reforma que tinha como meta a definitiva superação do aparato manicomial. O modelo de atenção em saúde mental tinha como base a afirmação dos direitos de cidadania das pessoas com transtornos mentais. A participação ampliada e organizada de usuários e familiares, expressavam características, qualificação e protagonismo na reforma psiquiátrica brasileira.

III Conferência Nacional de Saúde Mental. Cuidar, sim. Excluir, não. – Efetivando a Reforma Psiquiátrica com acesso, qualidade, humanização e controle social.

Relatório Final.

11 a 15 de dezembro de 2001.

 

Brasília.

 

Realizaram-se 163 conferências municipais e 173 Micro-regionais e regionais, estima-se a presença de 30.000 pessoas nesta etapa. Na etapa estadual,  todos os 27 estados da federação realizaram conferências estaduais, congregando aproximadamente 20.000 participantes. Na Conferência Nacional em Brasília, participaram 1480 inscritos regulares, 220 pessoas que transitaram nas atividades, totalizando 1700 participantes.

Cuidar, sim. Excluir, não

Efetivando a Reforma Psiquiátrica, com Acesso, Qualidade, Humanização e Controle Social.

O tema principal será discutido a partir do eixo temático:

Reorientação do modelo assistencial, tendo como subtemas:

- recursos humanos,

- financiamento,

- controle Social,

direitos, acessibilidade e cidadania.

 

A conferência se constituiu num importante espaço de avaliação da reforma psiquiátrica, reiterando os princípios de superação do modelo asilar, com a construção de redes de atenção totalmente substitutivas, e de afirmação da construção e garantia dos direitos de cidadania das pessoas com transtornos mentais.

IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial. Saúde Mental direito e compromisso de todos: consolidar avanços e enfrentar desafios.

Relatório Final.

 

27 de junho a 01 de julho de 2010.

 

Brasília

 

Foram realizadas 359 conferências municipais e 205 regionais, com a participação de cerca de 1200 municípios. Estima-se que 46.000 pessoas tenham participado do processo, em suas 3 etapas.

 

O tema central da conferência foi: Saúde Mental direito e compromisso de todos: consolidar avanços e enfrentar desafios.

Foi desenvolvido a partir dos seguintes eixos:

- políticas sociais e políticas de estado,

- consolidar a rede de atenção psicossocial e fortalecer os movimentos sociais,

- direitos humanos e cidadania como desafio ético e intersetorial.

A conferência reafirmou o campo da saúde mental como intrinsecamente multidimensional, interdisciplinar, interprofissional e intersetorial, e como componente fundamental da integralidade do cuidado social e da saúde em geral. Como um campo com interfaces importantes e necessárias reciprocamente entre ele e os campos dos direitos humanos, assistência social, educação, justiça, trabalho e economia solidária, habitação, cultura, lazer e esportes, etc.

Destacou-se ainda o fortalecimento do controle social, do protagonismo dos usuários, da formulação e avaliação coletivas da política pública da saúde, da transversalidade e articulação com as demais políticas públicas.

Fonte: conferências nacionais de saúde mental realizadas entre 1987 e 2010.14-17

 

Quadro 2: Matriz de análise documental – legislação

Título/Data

Conteúdo Comentado

Lei no 9.867, de 10 de novembro de 1999

Dispõe sobre a criação e o funcionamento de Cooperativas Sociais, visando à integração social dos cidadãos.

É um valioso instrumento para viabilizar os programas de trabalho assistido e incluí-los na dinâmica da vida diária, em seus aspectos econômicos e sociais. Há uma evidente analogia com as chamadas empresas sociais da experiência de reforma psiquiátrica italiana.

Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001

Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

Esse texto, aprovado em última instância no plenário da Câmara Federal, reflete o consenso possível sobre uma lei nacional para a reforma psiquiátrica no Brasil. A lei redireciona o modelo da assistência psiquiátrica, regulamenta o cuidado especial aos usuários internados por longos anos e prevê possibilidade de punição para a internação involuntária arbitrária ou desnecessária.

Decreto de 28 de maio de 2003

Institui Grupo de Trabalho Interministerial para os fins que especifica e dá outras providências.

Institui GT para avaliar e apresentar propostas para rever, propor e discutir a política do governo federal para a atenção a usuários de álcool, bem como harmonizar e aperfeiçoar a legislação que envolva o consumo e a propaganda de bebidas alcoólicas em território nacional.

Lei no 10.708, de 31 de julho de 2003

Institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações.

Lei do Programa De Volta Para Casa. Estabelece um novo patamar na história do processo de reforma psiquiátrica brasileira, impulsionando a desinstitucionalização de pacientes com longo tempo de permanência em hospital psiquiátrico, pela concessão de auxílio reabilitação psicossocial e inclusão em programas extra-hospitalares de atenção em saúde mental.

Decreto nº 7.179, de 20 de maio de 2010.

Instituí o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, com vistas à prevenção do uso, ao tratamento e à reinserção social de usuários e ao enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas, abrindo possibilidades de cuidado que ultrapassam a lógica proibicionista.

Decreto Nº 7.508 de 2011

Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa. Define Região de Saúde, Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde, Portas de Entrada, as Comissões Intergestores, Mapa da Saúde, Rede de Atenção à Saúde, Serviços Especiais de Acesso Aberto, Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica. Estabelece que para ser instituída a Região de Saúde deve conter, no mínimo, ações e serviços de: Atenção primária, Urgência e emergência, Atenção psicossocial, Atenção ambulatorial especializada e hospitalar, Vigilância em saúde.

Fonte: legislação brasileira relacionada a saúde as principais portarias relativas à área até o ano de 2019.18-20

DISCUSSÃO

Na década de 1970 o Brasil mantinha uma política de saúde mental baseada na compra de leitos nos hospitais psiquiátricos e clínicas privadas. Na contradição deste contexto, entre uma assistência psiquiátrica precária, destaca-se importância de entidades de militância política e reflexão acadêmica como o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) que foram fundamentais para que se difundisse a literatura crítica na área da saúde, da psiquiatria e saúde mental no Brasil.1

Em 1978, ocorreu um episódio importante que é a crise da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM) do Ministério da Saúde. Frente às denúncias sobre o tratamento precário nos hospitais psiquiátricos e reivindicações trabalhistas, houve a demissão de centenas de profissionais do Ministério da Saúde, todos no Rio de Janeiro. A crise da DINSAM consistiu num marco decisivo para a organização dos profissionais no Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental enquanto rede informal que objetivava organizar núcleos voltados para as lutas contra o modelo asilar.1

Outro episódio importante foi no V Congresso Brasileiro de Psiquiatria (Camburiú/SC, 1978) em que os grupos articulados acabam impondo um teor político a um congresso tido historicamente como conservador - e o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições (Rio de Janeiro, 1978) - com a presença de Basaglia, Guatarri, Castel e Goffman - que contribuíram para o engajamento de outros profissionais nas lutas pela reforma psiquiátrica.23

A primeira visita de Basaglia ao Brasil foi em 1975, em pleno regime militar, não tendo grande repercussão. Basaglia retorna em 1978 para participar do congresso no Rio de Janeiro, onde provocou polêmicas, visto a exposição das ideias da psiquiatria democrática e a recente experiência, ainda de 1976, de fechamento do Hospital Psiquiátrico Provincial de Trieste, na Itália. As visitas de Basaglia, somadas à crise do DINSAM, ao clima de denúncias, à organização do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental mobilizaram técnicos mais jovens dos serviços psiquiátricos públicos e privados que não conseguiam encontrar apoio nas universidades.24 O III Congresso Mineiro de Psiquiatria, realizado em 1979 representou a possibilidade concreta de conscientização dos profissionais sobre a necessidade de rever modelos de atenção, visto as mudanças ocorridas na gerência das instituições psiquiátricas da secretaria daquele estado, como no Hospital-Colônia de Barbacena, no estado de Minas Gerais, com diminuição de mortalidade hospitalar, relativa humanização do ambiente, entre outras.25

Nas conferências no Brasil, Franco Basaglia afirma que na maior parte do mundo os psiquiatras preferem manter os manicômios com as pessoas fechadas dentro deles e sob sua gestão, e que na época o que existia no Brasil, era uma contradição, um confronto entre o desejo de mudar e a realidade, mas que era necessário transformar o dizer em fazer. Menciona a importância de apoio da Sociedade Brasileira de Psiquiatria para efetivação de mudanças.3

Franco Basaglia esteve no Brasil durante os meses de junho e julho de 1979 e participou de conferências e debates realizados em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo que foram gravadas, transcritas e publicadas em 1979 no Brasil e em 2000 na Itália.3

A experiência de Basaglia em Gorizia e depois particularmente em Trieste com o fechamento do manicômio e a criação de novos serviços foram estímulos importantes num Brasil que começava um processo de abertura política e de liberalização da ditadura e em que os cidadãos encontravam espaço para sua voz e para luta por uma sociedade em que os direitos humanos fossem respeitados.

Durante a sua estada, Basaglia visitou o Hospital Psiquiátrico de Barbacena, em Minas gerais, onde havia muitas pessoas presas, no meio de fezes e algemadas, o que o abalou muito, falando aos presentes:

Em algum lugar do mundo a história parou, e ainda, há situações em que estamo-nos comprometendo com a morte e com a morte não há solução de compromisso [...] Sou como o menestrel medieval que percorre as aldeias e vai embora. É necessário que quando eu partir, o palco não fique vazio.3:136

Basaglia compara o hospital de Barbacena a um campo de concentração, retoma a discussão do protagonismo do homem nas lutas sociais e a necessidade de ações práticas, como denúncias ao governador do estado, ao Ministro da Justiça e a Associação Brasileira de Psiquiatria e outras associações, porque reconhece estar configurada uma situação muito grave de violação dos direitos humanos.3

Conferências e legislação

A I Conferência Nacional de Saúde Mental ocorreu em 1987 e seu relatório inicia abordando o Estado brasileiro, as desigualdades, o processo migratório do campo para cidade, da saída de um longo período de ditadura. Segue falando dos princípios para reformulação da assistência à saúde mental no contexto da reforma psiquiátrica.13

Esta Conferência tem o importante papel de explicitar as contradições e indicar caminhos para enfrentá-las, é marcada pela denúncia que vai explicitar o pessimismo da razão e requer uma outra prática13. Basaglia3 diz que no Brasil os doentes não querem sair do manicômio por duas razões: uma universal, porque viveram 20-30 anos internados, outra porque tem mais facilmente suas necessidades elementares atendidas dentro do manicômio do que fora dele. Basaglia fala do manicômio como o lugar do doente pobre, que não consegue inserir-se no sistema produtivo o que encontra congruência com o conceito de saúde ampliado na Conferência Nacional de Saúde de 1986, que a reconhece a como produto das condições de vida das pessoas. Basaglia reflete que isto pode levar ao pensamento racional de que se o doente não quer sair do manicômio, seja melhor permanecer lá, o que ele chama de aceitar a situação da internação como algo habitual. No entanto não se trata disto, se trata de lutar para que o doente, tendo suas necessidades atendidas esteja livre para se expressar de outra forma. Afirma que para resolver o problema da doença mental é necessário enfrentar as contradições do problema social e político, que uma mudança somente a nível médico não resolve.13

Após a I Conferência Nacional de Saúde Mental três portarias foram emitidas, a 189, 224 e 407 e tratam de fundamentalmente de criar as condições para que uma outra prática se estabeleça regulamentando o funcionamento e financiamento de ações e serviços comunitários fora do hospital psiquiátrico e definindo exigências mínimas para funcionamento dos mesmos.17 Destaca-se a regulamentação dos Centros ou Núcleos de Atenção Psicossocial, como serviços que devem oferecer cuidados intensivos na crise, evitando a internação, e atividades de reabilitação psicossocial, trabalhando com a inserção social. Este fato tem especial relevância para mostrar que a reforma psiquiátrica não se trata de aperfeiçoar serviços psiquiátricos tradicionais, mas de criar novos serviços na lógica da atenção psicossocial. Mesmo a regulamentação do funcionamento dos hospitais psiquiátricos na época tinha um firme propósito de identificar violação de direitos e reduzir leitos.

A I Conferência Nacional de Saúde Mental representa uma trajetória de ir além da transformação do sistema de saúde, desconstruir saberes e práticas institucionais de uma psiquiatria centrada no manicômio, avançar na crítica à instituição psiquiátrica, problematizar a relação da sociedade com a loucura e suas formas de lidar com ela. Após a Conferência, ocorre em dezembro de 1987, o encontro dos trabalhadores de saúde mental, em Bauru, a qual adota o lema “Por uma Sociedade Sem Manicômios”, indicando uma perspectiva mais avançada que a reformista2. A crescente participação de usuários de saúde mental e seus familiares nos debates e conferências passa a ser uma marca da reforma psiquiátrica brasileira.24

Basaglia afirma que não veio ao Brasil trazer uma receita europeia para os problemas brasileiros, pois pensa que são os brasileiros que devem encontrar soluções para seus problemas. Diz que a terapia do manicômio é capturar as pessoas indesejáveis e mantê-las numa instituição, portanto trata-se também de aglutinar técnicos dispostos a mudar e fazer parte deste novo Brasil. Afirma que na psiquiatria democrática italiana, a opção que fizeram foi manter aberta esta contradição, reconhecendo o manicômio como local de controle e não de cuidado, por isto entenderam que o único modo de enfrentar a doença mental ou a loucura é a eliminação daquele. Enfatiza que quando se diz não ao manicômio, se refuta a miséria do mundo, unindo-se aqueles que lutam pela emancipação.3

Certamente a pessoa que toma consciência da causa de seu internamento terá possibilidade de uma nova integração social. Não penso que o internado no manicômio deva ser um revolucionário e sim uma pessoa que tenta expressar sua própria subjetividade na sociedade.3:20

Outro fato marcante na época foi a Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América Latina, realizada em Caracas - Venezuela, em 1990, ocasião em que dirigentes de 16 países latino-americanos, entre eles o Brasil, acolherem as recomendações de criar programas de reestruturação da atenção em saúde mental, atualizar a legislação buscando assegurar os direitos humanos e civis sujeito em sofrimento e promover a organização de serviços comunitários, recomendando-se que a internação psiquiátrica, quando necessária, fosse feita em hospital geral.17

A II Conferência Nacional de Saúde Mental ocorreu em 1992 e seu relatório evidencia os marcos conceituais referentes ao modelo de atenção à saúde mental e direitos de cidadania, tendo como marca explicitar os fundamentos do modelo assistencial.14

Neste período, duas leis foram aprovadas, a 9.867, que cria as Cooperativas Sociais que permite o desenvolvimento de programas de suporte psicossocial para as pessoas com transtorno mental em acompanhamento nos serviços comunitários.17

A outra lei aprovada no período é a 10.216 Lei da Reforma Psiquiátrica que representa um avanço em relação a legislação vigente em termos de garantia dos direitos humanos e de uma rede de serviços comunitários, mas não prevê a extinção dos hospitais psiquiátricos.17 A Lei deriva do projeto de lei no 3.657 de 1989, que viria a ser conhecido como a Lei da Reforma Psiquiátrica que impedia a construção ou contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público; redirecionava recursos públicos para serviços territoriais, e tornava obrigatória a comunicação das internações compulsórias à autoridade judiciária. Este projeto enfrentou dificuldades, lobbies de entidades privatistas, da Associação Brasileira de Psiquiatria entre outros, sendo aprovada mais de 10 anos depois sendo pouco definitiva em relação a extinção dos manicômios e a compra de leitos pelo setor público nos mesmos, embora orientasse a política para um modelo de cuidado no território.18

No lugar da concepção de comunidade introduzida pela psiquiatria preventiva o Brasil, emerge o conceito de território, sob influência da psiquiatria democrática de Basaglia, enquanto um conjunto de referências objetivas e subjetivas de caráter social, econômico e cultural que configuram a inserção do sujeito, num modo de vida. E é sobre ele que a transformação deve operar.26

São emitidas 11 portarias no período (408, 88, 145,147, 111, 1.720, 1.077, 106, 799, 1.220, 175) que vão incidir especialmente na regulamentação, supervisão, controle e avaliação dos hospitais psiquiátricos criando mecanismos para tal e a implantação e financiamento dos Serviços Residenciais Terapêuticos como estratégia viabilizadora de apoio a pacientes egressos dos hospitais psiquiátricos que necessitam de habitação e acompanhamento.17

A reforma psiquiátrica brasileira não tendo por força de lei conseguido extinguir os hospitais psiquiátricos avança na perspectiva de fiscalizá-lo, reduzir leitos, inverter financiamento e ampliar os serviços territoriais que possam dar suporte esta transformação. Consiste numa disputa difícil, que vai requerer articulação política e um embate cotidiano na tentativa de convencimento de diferentes segmentos.

Basaglia relata que quando iniciaram na Itália o trabalho de transformação, violentaram a sociedade, obrigando-a a conviver com a loucura. Porém, o mais importante é que como novos técnicos, eles estavam ali para assumir a responsabilidade de suas ações e ajudar a comunidade a entender o que significava ter aquela pessoa ali. Afirma que isto é fundamental para tomada de consciência, porque na mesma cidade há muitas pessoas que pensam que o lugar da pessoa em sofrimento é no manicômio. Este consiste, um problema diário, pois para mudar a cultura deve-se buscar argumentos convincentes.3

O texto da III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2001, reafirma os princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira e a Conferência se dá no contexto da aprovação da Lei 10.216. Aponta a necessidade de aprofundamento da reorientação do modelo assistencial em saúde mental, com a reestruturação da atenção psiquiátrica hospitalar, expansão da rede de atenção comunitária e participação efetiva de usuários e familiares.15

Após a III Conferência Nacional de Saúde Mental é aprovado o Decreto 28 que consiste numa ação de criação de um Grupo de Trabalho com foco no uso ou abuso álcool ampliando o olhar da política para esta problemática e o Decreto 7.179 que institui o Plano Integrado de enfrentamento ao crack que passa a ser o foco de preocupação da mídia e da população.17-19 Também a Lei 10.708 do Programa de Volta para Casa, é aprovada no período que representa um passo importante para criar condições concretas a desinstitucionalização quando institui auxílio financeiro a pacientes com transtornos mentais com longo tempo de permanência em hospitais psiquiátricos.17 Em 2003 eram 206 os beneficiados do Programa de Volta para Casa, em 2010 -3.635 beneficiados.12

No período são aprovadas 33 portarias (251, 77, 336, 189, 626, 628, 816, 817, 305, 1.467, 1.635, 728, 1.001, 2.391, 457, 150, 1.455, 1.946, 1.947, 2.077, 2.078, 52, 53, 1.035, 442, 384, 396, 678, 204, 18, 154, 837, 1.190) e tratam de ampliar significativamente o escopo sob o qual a saúde mental deve focar suas ações. Neste sentido, as portarias vão regulamentar a supervisão, avaliação, financiamento e acompanhamento de hospitais psiquiátricos mantendo o eixo da redução de leitos, regulamentam o Programa de volta para casa, a criação de programas e serviços para enfrentamento do abuso de álcool e outras drogas, a ampliação do acesso ao tratamento do tabagismo na atenção básica, a inclusão de ações voltadas a deficiência e autismo, a criação de um plano estratégico voltado para atenção de crianças, a definição de procedimentos em oficinas terapêutica, a regulamentação e financiamento dos serviços territoriais de atenção psicossocial, o estabelecimento de um plano para assistência em saúde mental nas penitenciárias.17-19

No período 2004-2006, houve uma reconfiguração dos portes dos hospitais psiquiátricos, incentivando a diminuição do número de leitos. A partir da Portaria GM 251/2002 e Portaria SAS 1.001/2002, com o Programa Nacional de Avaliação de Serviços Hospitalares PNASH/Psiquiatria 2002 e 2003/2004 são indicados para descredenciamento 13 hospitais, 6 são fechados, e estavam sob intervenção municipal ou estadual, 1 em processo de descredenciamento. Em 2003, 62,42% dos hospitais psiquiátricos brasileiros foram avaliados em relação a assistência como ruins ou péssimos.11-12

As portarias 336, 189, 816, 817, 626 de 2002 tem particular importância por estabelecer, definir, financiar os Centros de Atenção Psicossocial (para atender na comunidade pessoas adultas, crianças e adolescentes com transtornos psiquiátricos graves e abuso de álcool e outras drogas), reconhecendo-os como serviços estratégicos na mudança do modelo assistencial.17 Entre 1980 e 1988 existiam 6 serviços, em 1990 eram 12, em 2000 - 208, em 2002 – 424, em 2010 são 1620 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no Brasil, e cobertura de 0.66 CAPS por 100.000 habitantes.11-12

Basaglia diz que pretende aprofundar nos debates no Brasil o tema do pessimismo da razão, que envolve o trabalho do médico, que aprendeu que as coisas são como são, pessimismo que consiste num patrimônio do técnico e do intelectual da burguesia. Mas que os psiquiatras democráticos italianos demonstraram que é possível mudar, extinguindo o manicômio, prevalecendo o otimismo da prática.3 Inspira-se em Antonio Gramsci27 na sua afirmação emblemática Pessimismo dell'intelligenza, ottimismo della volontà (Q28, III, 2332) para dizer:

O técnico, seja qual for sua especialidade, jamais deve pensar que as coisas vão terminar mal e que mais do que aquilo não se pode fazer. O novo técnico deve ter um objetivo bem preciso: conduzir seu trabalho no otimismo da prática. Se isso não acontecer, não há remédio. Essa frase não é minha, é de um grande revolucionário, Gramsci, que deu uma visão muito importante aos intelectuais. Com base nessa ciência política é que queremos fundar a nova ciência.3:89

Neste sentido, pode-se afirmar que o otimismo da prática contribuiu para que os serviços territoriais que se pretendiam substitutivos ao manicômio, se difundissem no Brasil, a partir de uma adoção de uma política pública de saúde mental com base na atenção no território, que conviveu ao longo dos processos de implementação com a contradição do hospital psiquiátrico.

O importante é que demonstramos que o impossível podia tornar-se possível. Há 20, 15, 10 anos atrás era impensável que o manicômio pudesse ser destruído. Podem acontecer que os manicômios voltem a ser fechados e mais fechados ainda que antes, eu não sei! Mas, de qualquer forma, foi demonstrado que se pode assistir a pessoa louca de outra maneira, e isso é importante pelo testemunho. Não creio que o fato de uma ação conseguir ser aplicada em sua totalidade implique uma vitória. O importante é outra coisa, é saber o que se pode fazer. É o que eu já disse mil vezes: não é que nós na nossa fraqueza, nessa minoria que somos, possamos vencer, pois é o poder que sempre vence; nós podemos no máximo convencer. A partir do momento em que convencemos, nós vencemos, isto é, levamos uma situação de transformação difícil de ser recuperada.3:107

O texto da IV Conferência Nacional de Saúde Mental que ocorreu em 2010 enfatizou o tema da intersetorialidade que aproximou novos atores ao debate da saúde mental e constituiu-se num avanço radical em relação às conferências anteriores, atendendo às exigências concretas da mudança do modelo de atenção. Também foi importante a incorporação das representações de outras políticas públicas à Conferência.16

Basaglia relata que no hospital de Gorizia haviam quinhentos leitos em que práticas como o uso do eletrochoque e da insulina, eram práticas usuais. Era um hospital dominado pela miséria, segundo ele, a mesma encontrada em todo manicômio. No momento que começaram a dar respostas a essa pobreza, se tinha diante de si um homem com quem se podia entrar em relação e não um louco.3

Havíamos já entendido que a pessoa doente tem como primeira necessidade não só a cura da doença, mas muitas outras coisas. Necessitava ter um relacionamento humano com quem a tratava. Precisava ter respostas reais para o seu ser. Precisava de dinheiro, de uma família e de tudo aquilo de que nós médicos que os tratamos também precisamos. Essa foi nossa invenção. O doente não é apenas um doente, mas um homem com todas as suas necessidades.3:17

Basaglia afirma que quando se abriu o manicômio, o doente passou a falar com sua voz e não mais a partir da voz do médico. Relata que no manicômio quando o doente perguntava quando poderia ir para casa e médico respondia que ele poderia ir amanhã. A lógica do manicômio obedece a mesma lógica de marido – esposa, pai – filho, idoso – jovem, a lógica do opressor sobre o oprimido. A contradição consiste em que no momento que o doente tem voz, com a abertura do manicômio, a relação muda, porque é necessário considerar que há uma outra voz. O autor enfatiza que foi um processo difícil, porque o oprimido não tinha voz e necessitou-se buscar nas organizações populares esta nova voz.3

Esta é outra forte influência do pensamento de Franco Basaglia na reforma brasileira, de mostrar que o apoio à mudança viria dos movimentos e organizações populares, visto que a ciência tradicional e as demais instituições tradicionais da sociedade tendem a produzir apenas mudanças que se adequam aos códigos da classe dominante. Apesar da não extinção do manicômio no Brasil, as influências do pensamento basagliano se reafirmam no tema da intersetorialidade que se fez necessária para uma prática no território e na disputa política pela reforma que chamou ao cenário novas lideranças sindicais, conselheiros de saúde, pessoas que representavam os interesses populares.

No ano seguinte a IV Conferência Nacional de Saúde Mental, foi expedido o Decreto 7.508 que tem fundamental importância porque regulamenta toda organização do sistema de saúde pública brasileiro, incluindo a atenção psicossocial como uma das ações essenciais do sistema. Neste período 20 portarias foram expedidas (2.841, 4.279, 122, 1.473, 2.026, 2.338, 2.648, 3.088, 3.089, 3.090, 121, 123, 130, 131, 132, 148, 349, 1.306, 857, 3.124) que regulamentaram os componentes da rede de atenção psicossocial no que se refere a assistência hospitalar, aos Centros de Atenção Psicossocial, inclusive os de álcool e drogas 24 horas, a urgência, os consultórios de rua, as unidades de acolhimento, os serviços residenciais terapêuticos, núcleos de atenção à saúde da família com uma ênfase ao crack.18,19

Em 2011 um importante avanço na política de saúde mental brasileira vem através da Portaria 308819 que institui a Rede de Atenção Psicossocial, que não inclui o hospital psiquiátrico, e reconhece um amplo leque de componentes como: Atenção psicossocial especializada, Atenção básica em saúde, Atenção de urgência e emergência, Atenção hospitalar, Atenção residencial de caráter transitório; Estratégias de desinstitucionalização.

Um tema muito polêmico, debatido nesta Conferência, foi o reconhecimento das comunidades terapêuticas privadas, de orientação religiosa e em muitas situações sem nenhum respaldo técnico, que acolhem usuários de álcool e outras drogas (privados de liberdade), como parte do sistema de cuidados público, com recebimento de recursos públicos.

A partir de então são lançadas, em 2017, resoluções e portarias (Resolução CIT 32, Portarias GM/MS 358828 e 2663, Portaria Interministerial n.2, Portarias de consolidação n. 3 e 6) que indicam movimentos de retrocessos com relação à política de saúde mental de desinstitucionalização inspiradas na revolução basagliana. Particularmente a partir da portaria 3588, de 21 de dezembro de 2017, que inclui o hospital psiquiátrico na Rede de Atenção Psicossocial, reafirmando uma instituição, que se busca superar, como espaço de tratamento no interior das políticas públicas, fortalecendo o seu financiamento.

Na sequência a Portaria 3.449/2018 institui Comitê com a finalidade de consolidar normas técnicas, diretrizes operacionais e estratégicas no contexto da política pública sobre o álcool e outras drogas, que envolvem a articulação, regulação e parcerias com organizações da sociedade civil denominadas Comunidades Terapêuticas. Em 2018, é lançada a Portaria GM/MS 2434 que reajusta o valor das diárias de internação hospitalar acima de 90 (noventa) dias do Incentivo para Internação nos Hospitais Psiquiátricos.

No início de 2019 a Nota Técnica nº 11 do Ministério da Saúde29 explicita contradições da reforma psiquiátrica brasileira e indica uma posição ideológica de gestores públicos que consideram o hospital psiquiátrico, como um serviço da rede de atenção psicossocial, não fomentando mais fechamento de unidades de qualquer natureza. Sob a égide de um discurso de ‘Nova política de saúde mental’, ao incluir o hospital psiquiátrico na Rede de Atenção Psicossocial, incluir o financiamento de equipamentos de eletroconvulsoterapia, se recicla a velha política do manicômio, se o reajusta pagamento de internação em hospital psiquiátrico (depois de 9 anos conforme menciona a nota técnica). Além de se desconsiderar o caráter substitutivo ao hospital psiquiátrico, dos serviços territoriais como os CAPS, se introduz medidas fortes de retrocesso na política de saúde mental, explicitando as contradições do processo de construção da transformação das práticas de cuidado em saúde mental no Brasil.

O processo de desmonte da rede substitutiva se mantém ativo a partir de um conjunto de dispositivos legais de gestão que passam a sustentar a política de fragilização da rede de atenção psicossocial, a medida em que deslocam o financiamento dos serviços substitutivos para ampliação do investimento de leitos nos hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reforma psiquiátrica brasileira tem enfrentado desafios e produziu importantes avanços na implantação de uma ampla rede de serviços psicossociais substitutivos aos manicômios, apesar de não ter logrado a vitória política de extingui-los. A reforma foi fortalecida com o apoio de representações dos interesses populares, mas enfrentou constantemente instituições coorporativas conservadoras que defendem o manicômio como dispositivo fundamental a atenção em psiquiatria.

A não aceitação da contradição como parte desta relação com a psiquiatria, o não reconhecimento da possibilidade de cuidar em liberdade, representa também a negação da possibilidade da construção de uma psiquiatria de caráter emancipatório.

REFERÊNCIAS

1 Amarante PDC. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/ENSP; 1995.

2 Birman J, Costa JF. Organização de instituições para uma psiquiatria comunitária. In: Amarante P (org). Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 1994.

3 Basaglia F. A Psiquiatria alternativa – contra o pessimismo da razão o otimismo da prática – conferências no Brasil. São Paulo: Brasil Debates; 1979.

4 Basaglia F. Che cos'è la psichiatria? Milano: Baldini Castoldi Dalai; 2018.

5 Basaglia F. L'istituzione negata. Milano: Baldini Castoldi Dalai; 2014.

6 Pivetta O. Franco Basaglia, il dottore dei matti. La biografia. Milano: Dalai Editore; 2012.

7 Piccione D, Dell'acqua P, Pitrelli N, Rovatti PA. Il pensiero lungo. Franco Basaglia e la Costituzione. Bolzano: Alpha & Beta, Merano; 2013.

8 Foot J. La Repubblica dei matti. Franco Basaglia e la psichiatria radicale in Italia, 1961-1978. Milano: Feltrinelli Editore; 2014.

9 Saraceno B, Ommeren MV, Batniji R, Cohen A, Gureje O, Mahoney J. Barriers to improvement of mental health services in low-income and middle-income countries. The Lancet. [Internet] 2007[cited 2019 Oct 28];370(9593):1164–74. Available from: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61263-X.

10 Jacob Ks, Sharan P, Mirza I, Garrido-Cumbrera M, Seedat S, Mari JJ, et al. Mental health systems in countries: where are we now? The Lancet. [Internet] 2007[cited 2019 Oct 28];370(9592):1061–77. Available from: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61241-0

11 Ministério da Saúde (BR). Saúde Mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006. [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde, 2007[acesso em 2021 abr 31]. Disponível em: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/1216.pdf

12 Ministério da Saúde (BR). Saúde Mental no SUS. As Novas Fronteiras da Reforma Psiquiátrica Relatório de gestão 2007-2010. [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde, 2011[acesso em 2021 abr 30]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_mental_fronteiras_reforma_psiquiatrica.pdf

13 Lakatos EM, Marconi MA. Pesquisa documental. In: Lakatos EM, Marconi MA. Fundamentos da metodologia científica. São Paulo, SP: Atlas; 2021. p. 174-83.

14 Ministério da Saúde (BR). 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental: relatório final [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 1988[acesso em 2019 out 28]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/0206cnsm_relat_final.pdf

15 Ministério da Saúde (BR). 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental: a reestruturação da atenção em saúde mental no Brasil. [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 1992[acesso em 2019 out 28]. Disponível em: bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/0208IIcnsmr.pdf

16 Ministério da Saúde (BR). III Conferência Nacional de Saúde Mental: caderno informativo. [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2001[acesso em 2019 out 28]. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/0210IIIcnsm.pdf

17 Ministério da Saúde (BR). Relatório final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial, 27 de junho a 1 de julho de 2010. [Internet].  Brasília: Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde; 201 [acesso em 2019 out 28] Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio_final_4_conferencia_saude_mental.pdf

18. Ministério da Saúde (BR). Legislação em saúde mental: 1990-2004 [Internet]. 5ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2004[acesso em 2019 out 28]. Disponível em bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/legislacao_mental.pdf

19 Ministério da Saúde (BR). Legislação em saúde mental, 2004-2010 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2010[acesso em 2019 out 28]. Disponível em http://www.saude.pr.gov.br/arquivos/File/Legislacao_em_saude_mental_2004_a_2010.pdf

20 Ministério da Saúde (BR). Legislação em saúde mental. [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2016[acesso em 2019 out 28]. Disponível em http://www.saude.gov.br/

21 Brasil. Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937. Dá nova organização ao Ministério da Educação e Saúde Pública. [Internet]. Diário Oficial da União. 15 jan 1937[acesso em 2021 abr 30]. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/1937/01/15

22 Brasil. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a Participação da Comunidade na Gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as Transferências Intergovernamentais de Recursos Financeiros na Área da Saúde e dá Outras Providências. [Internet]. Diário Oficial da União. 31 dez 1990[acesso em 2021 abr 30].  Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/1990/12/31

23 Bezerra JrB. De médico, de louco e de todo mundo um pouco: o campo psiquiátrico no Brasil dos anos oitenta. In: Guimaraes R, Tavares RAW. Saúde e sociedade no Brasil dos anos 80. Rio de Janeiro: Relume-Dumara; 1994. p.171-91.

24 Rotelli F, Amarante PDC. Reformas Psiquiátricas na Itália e no Brasil. Aspectos históricos e metodológicos. In: Bezerra B, Amarante PDC. Psiquiatria sem hospício. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1992. p.41-55

25 Delgado P. A psiquiatria no território: construindo uma rede de atenção psicossocial. Saúde em Foco: informe epidemiológico em saúde coletiva. 1997:6(16):41-3.

26 Tenório F. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. [Internet]. 2002[acesso em 2019 out 28];9(1):25-59. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59702002000100003 

27 Gramsci A. Quaderni del carcere. Edizione critica dell'Istituto Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi editore; 1975.

28 Brasil. Portaria nº 3588, de 21 de dezembro de 2017. Altera as Portarias de Consolidação no 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências [Internet]. Diário Oficial da União. 22 dez 2017[acesso em 2021 abr 30. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/2017/12/22

29 Ministério da Saúde (BR). Nota Técnica nº11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS de 04 de fevereiro de 2019. 2019[acesso em 2019 out 28]. Disponível em: http://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf

Recebido em: 14/10/2020

Aceito em: 12/05/2021

Publicado em: 09/06/2021



[1] Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Pelotas, Rio Grande do Sul (RS). Brasil (BR). E-mail: kantorski@uol.com.br ORCID: 0000-0001-9726-3162

[2] Università degli Studi di Torino (Unito). Torino (TO). Itália (ITA). E-mail: mariocardano@unito.it ORCID: 0000-0003-0268-3020

[3] Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Pelotas, Rio Grande do Sul (RS). Brasil (BR). E-mail: mhantonacci@gmail.com ORCID: 0000-0001-8365-9318

[4] Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Pelotas, Rio Grande do Sul (RS). Brasil (BR). E-mail: arianecguedes@gmail.com ORCID: 0000-0002-5269-787X

 

Como citar: Kantorski LP, Cardano M, Antonacci MH, Guedes AC. Política de saúde mental brasileira: uma análise a partir do pensamento de Franco Basaglia. J. nurs. health. 2021;11(2):e21112120766





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