Siqueira HCH. O ensino de enfermagem no contexto do tempo. J. nurs. health. 2020;10(3):e20103011

https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/20323

Editorial

Ensino de enfermagem no contexto do tempo

Nursing teaching in the context of time

La enseñanza de enfermería en el contexto del tiempo

O tempo passado, presente e futuro se interliga e influencia-se mutuamente. É possível conhecer o passado e o presente enquanto o futuro é tempo de possibilidades, tempo de criação.*

Hedi Crecencia Hecler de Siqueira[1]

A amplitude da temática proposta: “Ensino de Enfermagem” remonta a tempos longínquos da humanidade e é influenciada, interconectada e estimulada  por inúmeros  fatores, dentre eles, a observação, a experiência, as crenças, os valores, os hábitos além do conhecimento popular e das práticas que induzem à forma de pensar e fazer dos povos, nos distintos períodos histórico-sócio-culturais. Assim, nos primórdios da humanidade, as pessoas ao serem instigadas pela obrigação humanitária de prestar auxílio a outrem, eram sensibilizadas e inspiradas, pelas circunstâncias do espaço no qual viviam, trabalhavam e se desenvolviam, a inovar, criar e inventar suas formas próprias de acolher e atender as necessidades multidimensionais do ser humano e transmiti-las às demais gerações.

O homem, nesse período, possuía grande respeito, apreço e, até mesmo, veneração pela natureza que lhe servia de acolhimento, proteção, sobrevivência, abrigo, utilizando-se dos bens oferecidos gratuitamente, pela mesma. Essa era, denominada organísmica, demarcou a maioria das civilizações desse período e caracterizava-se pela vivência das pessoas em pequenas comunidades, consideravam os fenômenos materiais e espirituais interdependentes e interligados e conferiam supremacia das necessidades da comunidade às individuais.1

Em relação à Enfermagem, nesse período, parte-se do princípio que essa com seu habitual conceito de centralizar suas funções no profundo, acentuado, marcante e definido escopo do cuidado fez-se presente, intuitivamente, desde os primórdios do nascimento da humanidade expressa pela atenção, presença, gentilezas, dedicação, zelo, desvelo, precaução, ou seja cuidados humanos – sem necessidade de regras e, nem mesmo, possibilidades de um ensino específico para o exercício dessa função, praticada com inspiração na “mãe natureza” da qual se considerava parte integrante.

A natureza inspiradora dessa função induziu a escolher ações e tomadas de decisões que, por sua vez conduziram à movimentos e respostas complexas, mas, repletas de novas ideias, com possibilidades de avanços de conhecimentos, talvez mecânicos, populares, oriundos do senso comum, não científicos que se repetiram por longos anos, avanços esses necessários de registro porque a história-sócio-cultural foi inspirada e construída no modelo da natureza, paradigma que vigorou até os anos de 1.500.

Essa estreita relação do homem com a natureza aos poucos permitiu uma evolução na sua maneira de pensar e fazer, fato que o fez sentir-se capaz de interferir nela e explorá-la por meio de instrumentos e tecnologias que conseguiu produzir e implementar. Assim, a visão de mundo organísmico nos séculos XVI e XVII foi mudando drasticamente, modificando a maneira de pensar e perceber o mundo pelo homem.

O conceito do universo/natureza visto como mãe nutriente, protetora e acolhedora, modificou-se lentamente, mas de forma continuada o que levou a uma verdadeira revolução e induziu o homem a interferir e destruir a natureza em seu próprio benefício. Ao olhar o universo nessa vertente histórica, inicia-se uma nova fase da humanidade, invertem-se os valores e introduzem-se princípios e formas de viver que fragmentam e destroem o pensamento unitário e interdependente de todos os elementos contidos na natureza. Muda-se o conceito do próprio ser humano considerado, até então como elemento pertencente e integrante da natureza/universo vivo e espiritual, para o de uma máquina, capaz de interferir na natureza em benefício próprio.2

A concretização dessa era histórica conhecida como paradigma cartesiano encontrou guarida no século XVI, XVII e, de forma geral, perdura e influencia no pensar e fazer do homem até nossos dias. Cientistas, como René Descartes em 1619, trocou a ideia do universo, visto como uma “Mãe” que protege, nutre, cuida e sustenta o homem para o conceito que percebe o universo como uma máquina regido por leis matemáticas e físicas a funcionar de forma independente, fragmentária, linear e hierárquica. Foram introduzidos princípios que caracterizam essa teoria que separou mente e matéria em domínios independentes, fortalecendo o entendimento do ser humano afastado do ambiente/espaço/habitat em que vive, trabalha e se desenvolve.3

Neste contexto, a doença é vista como um mau funcionamento da máquina/organismo que precisa de reparo ou substituição de órgãos, tecidos ou a sua extirpação. Nesse mesmo entendimento, o ensino, nas diversas áreas do conhecimento, toma por base um novo método que descreve matematicamente a natureza considerando as propriedades materiais essenciais, quantitativas e movimentos, ignorando e eliminando da ciência as projeções mentais e como som, sabor, cheiro, sentimentos, emoções. Assim, o cartesianismo segregou a mente e o corpo e afirmou não haver relação entre elas.

Com base nesses conceitos, na área da saúde a ênfase direciona-se para a doença e não ao doente, pessoa com múltiplas necessidades. Ignora-se as conexões, as relações e o contexto, em que o fenômeno acontece, uma vez que nesse paradigma não existem relações e influências entre eles. Essa maneira de pensar, fazer e ser, enfatiza a individualidade, eleva a exploração da natureza, cujos elementos são considerados inesgotáveis/infinitos, eleva a ganância, dá preferência a economia em detrimento do bem estar e qualidade de vida da humanidade.

Esse paradigma influenciou e continua a influenciar profundamente o ensino, a pesquisa, o conhecimento e consequentemente a forma de ser, pensar e fazer da humanidade até os dias atuais, atingindo todas as áreas do conhecimento, entre elas a enfermagem que acentuou a dicotomia entre teoria e prática, dividiu e subdividiu o conhecimento ministrado em disciplinas e que, em muitos espaços, ainda continua sendo realizado dessa maneira. A estrutura e organização das instituições de formação profissional, foram e, em grande parte, ainda são departamentalizados que, assim, ofertam disciplinas de forma independente, desconectadas da realidade, ocasionando uma cisão entre a multiplicidade de conhecimentos e necessidades multidimensionais do ser humano, o que fortalece a dicotomia entre teoria e prática.

Entretanto, após mais de três séculos de domínio desse paradigma, envolvendo e invadindo a forma de pensar e fazer da humanidade, cientistas da Europa, especialmente biólogos, em 1920 iniciam a contraposição a esse modelo. Nesse arcabouço, discutem e divergem do pensamento cartesiano e apresentam as primeiras características de um novo paradigma, Pensamento Sistêmico/Paradigma sistêmico, enfatizando a visão dos organismos vivos e não vivos como uma totalidade integrada, inter-relacionada, interdependente e contextualizada.4

A oposição ao cartesianismo recebeu força e ênfase com novos estudos e conceitos e divulgação em 1950 da Teoria Geral dos Sistemas por Ludwig von Bertalanffy com base nos princípios de organização dos sistemas vivos – fundamentos já defendidos anteriormente pelo pesquisador russo Alexander Bogdanov. Assim, com base nos constructos estabelecidos entre os elementos vivos (bióticos), entre os quais o homem e não vivos (abióticos) constituintes da natureza e suas relações, interações e conexões formam uma totalidade/unidade de um dado espaço e tempo peculiar. Perceber o mundo nessa perspectiva é retomar o respeito à natureza, tornar consciente a necessidade de preservá-la pois, seus elementos são esgotáveis/finitos o que torna imprescindível a participação da humanidade da sua sustentabilidade. Essa nova visão de mundo carece ter como base o novo conhecimento, o ensino, a formação do pensamento voltado aos princípios que fundamentam, direcionam e sustentam o pensar e fazer sistêmico do ser humano.5

Desde a criação do paradigma sistêmico ocorreram grandes mudanças na área da saúde que exigem novas estratégias no ensino/formação dos profissionais da saúde, entre eles, os da enfermagem que, em grande parte, continuam reproduzindo uma formação fragmentada, linear, hierarquizada com base em disciplinas independentes, desarticuladas do contexto, com ênfase  na doença e nas práticas hospitalcêntricas. Entretanto, a enfermagem no constructo do ensino, ciente das necessidades de mudanças na formação do enfermeiro para conseguir acompanhar  as modificações produzidas na área da saúde na década de 80 e, especialmente, a partir de 90, iniciou discussões que levaram a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Enfermagem que enfatizam a articulação entre a formação do enfermeiro e os conceitos e princípios do Sistema Único de Saúde, contidos na Constituição Federal de 1988, a partir de núcleos ou áreas de competências as quais se destacam: o cuidado de enfermagem na atenção à saúde humana, Gestão/gerência do cuidado de enfermagem e serviços de Enfermagem/saúde, Educação em Saúde, Desenvolvimento Profissional de Enfermagem, Investigação/Pesquisa em Enfermagem/Saúde.6

Nesse enfoque, a saúde deixa de ser apenas ausência de doença e abarca o conceito ampliado. Assim sendo, o paradigma cartesiano é insuficiente para dar cobertura na forma de pensar e fazer saúde e emerge o paradigma sistêmico divulgado em 1950 por Bertalanffy e, em complementaridade o Pensamento Ecossistêmico, entendido como a unidade funcional da ecologia/estudo da ciência do cosmos.7 Assim, ao direcionar o olhar para o século XXI, é imprescindível apoiar e criar uma nova estrutura e organização de ensino na formação do enfermeiro, com base nas políticas públicas de saúde e educação, alicerçada no Pensamento Sistêmico. O paradigma cartesiano deixou de atender muitas das necessidades do ser humano em relação à saúde, com seu conceito ampliado conforme a Conferência da Alma-Ata em 1978 e VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), bem como, o seu conceito e direitos expressos na Constituição Nacional Brasileira de 1988. Neste sentido, a formação do profissional enfermeiro precisa envolver as multidimensionalidades do ser humano nos seus aspectos biológicos, sociais, espirituais e psicológicos numa percepção de totalidades inter-relacionadas, integradas, interconectadas, formando redes com o contexto no qual vive, trabalha e se desenvolve, aspectos esses defendidos e contidos no Pensamento Sistêmico/Ecossistêmico.

Essa nova forma de projetar o ensino de enfermagem no contexto do tempo, é necessário considerar e atender as  políticas de saúde e de educação, a fim de atender as exigências de saúde, que atualmente sinalizam para a formação de redes envolvendo ações e serviços constituintes dos espaços/sistemas, aqui de ensino da enfermagem.8-9 Nesse contexto, propõe-se a formação do enfermeiro utilizando a modalidade do ensino integrado no qual o desenvolvimento do conhecimento se realiza de forma criativa, participativa e ativa do acadêmico. A efetivação do saber, nessa modalidade, se processa por meio da crítica reflexiva sobre o processo de aprendizagem proposto, pois proporciona trocas mútuas de conhecimento entre docente e discentes, ensino, serviço e sociedade de forma contextualizada, integrada, interconectada e inter-relacionada com base nos princípios do paradigma sistêmico/ecossistêmico.

Referências

1 Capra F. Pertencendo ao universo: explorações nas fronteiras da ciência. São Paulo: Cultrix; 1998.

2 Capra F, Luisi PL. Visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix; 2014.

3 Capra F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix; 2006.

4 Senge PM. A quinta disciplina. 25ª ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2017.

5 Bertalanffy L. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. 7ª ed. Petrópolis: Vozes; 2013.

6 Soares DC, Milbrath VN, Oliveira NA, Pereira QC. Enfermagem: da história as interfaces com a profissão. In: Siqueira HCH, Pereira QC; Cecagno D (org). Equipe multiprofissional de saúde: ações inter-relacionadas. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária PREC/UFPEL; 2009.

7 Odum E. Funamentos de ecologia. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenklan; 2001.

8 Siqueira HCH, Thurow MRB, Paula SF, Zamberlan C, Medeiros AC, Cecagno D, et al. Health of human being in the ecosystem perspective. Rev. enferm. UFPE on line.  [Internet]. 2018[cited 2020 Dec 28];12(2):559-64. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/download/25069/27887

9 Cecagno D. Formação acadêmica do enfermeiro na perspectiva ecossistêmica [tese] [Internet]. Rio Grande (RS): Universidade Federal do Rio Grande; 2015[acesso em 2020 dez 29]. Disponível em: https://sistemas.furg.br/sistemas/sab/arquivos/bdtd/0000010982.pdf

Data de publicação: 30/12/2020



*Pensamento da autora com base em Prigogine I. La Nascita del tempo. Lisboa: Edições 70; 2008.

[1] Enfermeira e Administradora Hospitalar. Doutora em Enfermagem. Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Rio Grande do Sul (RS). Brasil. E-mail: hedihsiqueira@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-9197-5350





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