ARTIGO ORIGINAL

Gravidez de substituição: ressignificando o adoecimento por câncer

Surrogacy: new meaning for cancer disease

Gestación de sustitución: resignificación de la enfermedad por cáncer

Mergen, Natália Taís[1]; Cabral, Fernanda Beheregaray[2]; Hildebrandt, Leila Mariza[3]; Silveira, Andressa da[4]; Girardon-Perlini, Nara Marilene Oliveira[5]; Van der Sand, Isabel Cristina Pacheco[6]

RESUMO

Objetivo: conhecer a vivência da família ampliada quando um de seus membros/casal decide pela gravidez de substituição após diagnóstico e tratamento de câncer ginecológico. Método: estudo de caso de abordagem qualitativa. Participou uma família ampliada de sete pessoas domiciliadas em dois municípios. Os dados foram produzidos pela narrativa de vivências, obtidos por entrevista aberta e submetidos à análise temática. Resultados: a primeira categoria refere-se à união da família para apoiar a familiar que enfrentava um diagnóstico de câncer ginecológico. A segunda discorre sobre sentimentos que representaram o amálgama familiar diante do adoecimento e da decisão pela gravidez de substituição, vitais ao amparo da gestante substituta e mãe biológica. Conclusões: a gravidez de substituição possibilitou que a família ressignificasse o adoecimento e o sentido de família, mobilizada pela solidariedade, altruísmo, empatia e fé.

Descritores: Mães substitutas; Neoplasias; Família; Enfermagem; Enfermagem familiar

ABSTRACT

Objective: to share experiences of an extended family when one of its members/couple decides for surrogate pregnancy after gynecological cancer’s diagnosis and treatment. Method: it is a case study with a qualitative approach. An extended family composed of seven people, residing in two municipalities, participated in the study. Data were produced by the narrative of experiences, obtained by open interviews and submitted to thematic analysis. Results: the first analytical category refers to the union of the family to provide support who faced the diagnosis. The second one is about the feelings that represented the family amalgam face to sickness and the decision for surrogate pregnancy, both vital for the support to the surrogate and the biological mother. Conclusions: the surrogate pregnancy made it possible for the family to resinify the sickness and the sense of the family itself, and had been mobilized by solidarity, altruism, empathy and faith.

Descriptors: Surrogate mothers; Neoplasms; Family; Nursing; Family nursing

RESUMEN

Objetivo: conocer la vivencia de la familia ampliada cuando uno de sus miembros/pareja se decide por gestación de sustitución después del diagnóstico y tratamiento del cáncer ginecológico. Método: estudio de caso cualitativo. Participó una familia de siete personas domiciliadas en dos municipios. Los datos fueron producidos por la narrativa de vivencias, obtenidas por entrevistas abiertas y sometidos a análisis temático. Resultados: la primera categoría se refiere a la unión familiar para apoyar quien enfrenta diagnóstico de cáncer ginecológico. A segunda discurre sobre sentimientos que representan la amalgama familiar delante el proceso de enfermedad y la decisión por el embarazo de sustitución, vitales para el amparo a la embarazada y madre biológica. Conclusiones: el embarazo de reemplazo permitió a la familia replantear la enfermedad y el sentido de familia, movilizados por la solidaridad, el altruismo, la empatía y la fe.

Descriptores: Madres sustitutas; Neoplasias; Familia; Enfermería; Enfermería de la familia

INTRODUÇÃO


A gravidez de substituição é aquela em que uma mulher gera uma criança para outra, constituindo-se em uma técnica de reprodução assistida, que pode se associar ou não a outras que possibilitam a fecundação.1

No Brasil, o que regulamenta eticamente a reprodução assistida é a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.168/2017. Em relação à gravidez de substituição, essa Resolução orienta que a mulher doadora deve pertencer à família de um dos parceiros, em um parentesco consanguíneo até o quarto grau (mãe/filha, irmã/avó, tia/sobrinha ou prima), respeitando a idade limite de até 50 anos.2 Percebe-se, a partir daí, que a temática da gravidez de substituição diz respeito à família, visto que a decisão envolverá, no mínimo, o casal e uma familiar de até quarto grau.

A família, neste estudo, refere-se a um conjunto de pessoas que, reconhecendo-se em suas singularidades, se inter-relaciona e mantém interdependência, geralmente, com interesses em comum.3 Ademais, considera-se que os membros de uma família formam um sistema complexo, no qual cada um é um subsistema individual, que estabelece interações com os demais. Nesta perspectiva, a mudança em um integrante da família afeta todos os seus membros, causando desequilíbrio no sistema que, pela habilidade de reorganização, poderá reequilibrar-se.3-4

Assim, o nascimento representa momento de modificação, impondo tensões e reflexões à família, como um todo. Estas podem ser intensificadas quando a concepção da criança foge dos padrões usuais, a exemplo da gravidez de substituição. Dessa forma, além do casal, que é atingido pelas questões físicas e emocionais advindas da impossibilidade de gestar, seja por infertilidade ou outra causa, e também pela decisão relativa à gravidez de substituição, a família ampliada, aqui entendida como um sistema que inclui, além dos familiares, os amigos, vizinhos, dentre outros, também pode apresentar alterações emocionais, psicológicas, organizacionais e estruturais.5

A alternativa da gravidez de substituição oferecida nessa ocasião tem respaldo na literatura científica,6 em casos de doenças que possam comprometer a fertilidade de um casal em idade reprodutiva, como ocorre na neoplasia uterina com consequente histerectomia. Nessas situações, cabe ao médico considerar não apenas a cura da doença, mas também a qualidade de vida em longo prazo como parte integrante dos cuidados oncológicos, designando atenção precoce à preservação da fertilidade feminina. Vale ressaltar que a discussão das alternativas reprodutivas cabe a uma equipe multidisciplinar, composta por médicos, enfermeiros e psicólogos. 6

Salienta-se que a decisão por esse tipo de gravidez impacta social e culturalmente pela sua novidade e, também, porque é atravessada por questões morais, éticas e de outras ordens, o que pode repercutir na dinâmica da família e, por vezes, na saúde de cada um dos seus membros ou do sistema familiar. Diante disso, percebe-se que a enfermagem, categoria profissional das autoras deste estudo, tem espaço nos casos de gravidez de substituição para desenvolver ações de promoção, de manutenção e, em determinadas situações, de fortalecimento para recuperação da saúde e da unidade do sistema familiar.

Diante dessas considerações, a pergunta de pesquisa foi: “Como se dá a vivência de uma família ampliada que tem um membro/casal que decide, após diagnóstico e tratamento de um câncer ginecológico, por uma gravidez de substituição?” Delineou-se para o estudo o objetivo: conhecer a vivência da família ampliada quando um de seus membros/casal decide pela gravidez de substituição após diagnóstico e tratamento de câncer ginecológico.

MATERIAIS E MÉTODO

Trata-se de um estudo de caso de abordagem qualitativa, que investiga fenômenos contemporâneos em profundidade em seu contexto de vida real, de modo a torná-los compreensíveis. Nessa lógica, parte-se de uma problemática mais ampla, mediante a particularização do caso que, apesar do caráter singular, possibilita a apreensão de muitos aspectos ou experiências que são gerais e que podem ser transferíveis a outros casos pelas similaridades das condições particulares e contextuais de cada situação.7

Partindo-se da premissa que cada indivíduo e seu sistema familiar têm uma história singular, elegeu-se intencionalmente uma família ampliada que vivenciou uma gravidez de substituição. Em razão de que uma de suas integrantes, sem filhos, submeteu-se a uma histerectomia após diagnóstico de câncer do colo uterino. O primeiro contato com essa família se deu na assistência ao puerpério, no âmbito hospitalar, por uma das autoras deste estudo, momento em que se realizou o convite para a sua participação na presente pesquisa.

A família participante do estudo compunha-se de sete pessoas (mãe biológica, gestante substituta, avós materna e paterna, irmã da mãe biológica, tia da mãe biológica e amiga da família). Destaca-se ainda, que a mãe de substituição é cunhada da mãe biológica. Foram critérios de inclusão: ter participado da vivência da gravidez de substituição, entes que, segundo o ponto de vista dos colaboradores, fazem parte da família. Quanto aos critérios de exclusão: não ter condições cognitivas para participar da produção de dados e ser menor de 18 anos.

A família residia em dois municípios do sul do Brasil, distantes entre si 50 quilômetros e com aproximadamente 40.000 habitantes cada um. O município da mãe biológica e da gestante substitutiva, consideradas participantes-chave deste estudo, contava, à época do caso em análise, com três médicos obstetras. As gestantes de alto risco ou que requereriam atenção especializada, como uma gravidez de substituição, eram comumente referidas para serviços de média e alta complexidade de outros municípios.

A produção dos dados ocorreu após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) pelo parecer consubstanciado número 2.545.047 e CAEE número 83450118.2.0000.5346. Todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ancorando-se na Resolução 466/2012. A referência aos participantes do caso aqui exposto se dá por codinomes.

Em razão do objeto deste estudo, optou-se pela narrativa para a produção dos dados, que se constitui no ato de contar o caso em análise em uma determinada sequência, incluindo, de forma sintética, começo, meio e fim. A narrativa de vivências apresenta-se pertinente ao estudo por tratar da história de uma pessoa (ou de um grupo) sobre um determinado evento.8

Para a obtenção das narrativas optou-se pela entrevista coletiva aberta, em que o pesquisador solicita que as pessoas narrem a experiência,8 o que ocorreu em abril de 2018, na residência da gestante substituta, envolvendo todas as pessoas já mencionadas. O processo, coordenado e gravado por uma das pesquisadoras, teve duração de três horas e norteou-se pela questão: Contem-me da vivência relativa à gravidez em que foi gerada Lara. A entrevista foi transcrita de forma fidedigna. Utilizou-se, ainda, o diário de campo, cujos registros foram realizados por auxiliar de pesquisa, que, a fim de facilitar a identificação de quem estava se manifestando no áudio, anotou o início de cada interlocução e o nome do respectivo interlocutor.

O processo analítico dos dados se deu por meio da análise de conteúdo do tipo temática, composto por três etapas. Na pré-análise tomou-se, por meio de leitura exaustiva, contato com o material produzido, com vistas a uma impregnação das informações aí contidas; na exploração do material, realizou-se a categorização dos dados, recortando-se o texto e agrupando-se as unidades de registro por afinidade temática; por fim, buscou-se a compreensão e interpretação dos resultados, integrando-os ao referencial de ancoragem e de cotejamento.9 Os resultados foram enviados na íntegra à família solicitando que realizassem sua validação, os quais foram confirmados.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O caso, objeto deste estudo, diz respeito a um sistema familiar composto por Isadora (25 anos), uma das participantes-chave, que aos 21 anos foi acometida por câncer do colo de útero e, desde sempre, teve vontade de ser mãe, sendo cobrada, neste sentido, pelo sogro desde o namoro. Isadora é filha mais nova de Maria Inês e de Carlos, que têm mais dois filhos - Pedro Henrique e Letícia. O irmão de Isadora, Pedro Henrique (35 anos), é casado com Daniela (30 anos), a segunda participante-chave deste estudo, com quem tem dois filhos, de sete e cinco anos, respectivamente. Sua irmã, Letícia (37 anos), casou-se com Ricardo e teve um filho (14 anos). Isadora é casada com Marcelo, filho de Gomercindo e de Nádia. Águida, uma amiga muito próxima da família, também participou do estudo, assim como Carmem, tia de Isadora.

A família iniciou sua narrativa mencionando que as duas filhas tiveram diagnóstico de câncer. A filha mais velha, Letícia, aos 31 anos foi diagnosticada com câncer no colo do útero, sendo submetida a histerectomia e radioterapia. Essa vivência representou sofrimento a todos, corroborando o expresso na literatura, de que na família, ao se dar uma mudança em um de seus membros, todos são afetados em menor ou maior grau.3-4

A trajetória familiar relativa à gravidez de substituição no âmbito do adoecimento por câncer de uma de suas integrantes (Isadora) está imersa em duas categorias analíticas.

A união reequilibra e fortalece o sistema familiar, protegendo a pessoa adoecida que passa por duplo luto

A família relatou que, a partir do diagnóstico de Letícia, Isadora passou a realizar semestralmente exame preventivo de câncer do colo do útero. Em dois anos, ela teve também um resultado de colpocitologia oncótica cervical alterada, especificamente um câncer de grau severo que já atingia adjacências (NIC IV). Para receber esse diagnóstico, Isadora compareceu ao Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON), em município da região, acompanhada da irmã e de uma amiga.

Fomos no CACON pegar o resultado da biópsia. Deu que tinha um pouco do câncer. Foi desesperador! Graças a Deus que a Águida estava junto. Eu e a mana não sabíamos o que fazer, estávamos desestruturadas, saímos de lá loucas com a notícia. Foi bem difícil! (ISADORA)

A família ampliada tem papel importante ao oferecer amparo à pessoa doente ou em iminência de um adoecimento desde a suspeita ou o diagnóstico, fortalecendo-a.4

Isadora, orientada por valores familiares, reuniu vários componentes do sistema familiar para contar sobre o adoecimento. A notícia acometeu a todos. A mãe de Isadora, de modo emocionado, rememorou:

O dia que recebi a notícia foi terrível [choro]. Aquele dia para mim acabou. Ali eu caí mesmo [referindo-se ao estado depressivo]. O Ricardo [genro] me abraçou apertado e disse que assim como nós tínhamos vencido com a Letícia, com a Isadora nós também iríamos vencer. Ele me deu muita força. Eu me apeguei a ele. (MARIA INÊS)

A narrativa revelou que o sistema familiar foi acometido por uma perturbação transitória de seu estado anterior de equilíbrio, passando a enfrentar um período de desorganização no seu funcionamento. Ademais, o fato de Isadora não poder gerar seu próprio filho depreendeu das narrativas como sinônimo de um duplo luto, que “corta pela raiz” sonhos.

É uma dor insuportável, é a dor de uma mãe que perdeu um filho. (ISADORA)

Era um luto... Na Bíblia diz que uma mulher é criada para gerar um filho e aí você recebe a notícia que não vai conseguir gerar um filho, é cortar pela raiz. (ÁGUIDA)

A vivência do luto se deu, em um primeiro momento, pelo adoecimento por câncer, pela sua representação social como fatal. Esse luto não se remete somente a uma morte física, mas à morte de sonhos e de desejos, especificamente o de ser mãe. Vale destacar que o luto não está vinculado exclusivamente a situações de morte, mas também, relacionado a contextos de perdas reais e simbólicas vivenciados pelas pessoas. Assim, o luto pode perpassar a dimensão física e psíquica do indivíduo, envolvendo aspectos pessoais, profissionais, familiares e sociais.10

As narrativas e a emoção de cada palavra emitida ao discorrerem acerca dos sentimentos que foram tomados na revelação do diagnóstico de câncer de Isadora. E quando a família rememora acerca dos sentimentos dela ao receber a notícia de que não poderia engravidar, foram comparados à dor e ao sofrimento de uma mãe que perdeu um filho. O luto vivenciado por Isadora e sua família não se remete a uma morte física, mas sim à de sonhos e a do desejo de ser mãe.

Cabe lembrar que o luto pode ser encarado pelos indivíduos de modos distintos. Contudo, de forma geral, as pessoas enfrentam cinco estágios nessa vivência: a negação e isolamento, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação.11 Essas etapas nem sempre ocorrem nesta sequência e não são estanques em si mesmas, muitas vezes misturando-se.

O não cumprimento das expectativas familiares de continuidade por meio de novas gerações parece aumentar a vivência do luto, marcando os sujeitos como incapazes, visto que no contexto do estudo parece haver uma naturalização da maternidade/paternidade.

Embora já tenha ocorrido modificações na sociedade atual, ainda se espera da mulher que ela exerça o seu papel de mãe.12 Entre os sujeitos integrantes da família ora em análise parece haver a naturalização da maternidade/paternidade. Todavia, estes se organizam no sentido de construir possibilidades para a situação que estava sendo posta, ou seja, a impossibilidade de Isadora ter filhos em função de um câncer de colo uterino e, consequente histerectomia.

Em resposta ao sofrimento emergente nessa situação, a família uniu-se em apoio à familiar doente, o que contribuiu para fortalecer, também, o sistema familiar, que necessitava se reorganizar para oferecer amparo ao componente adoecido.

Eu tive muito apoio da mãe, do pai, da minha sogra, do meu sogro. Eles estiveram sempre ao meu lado. A gente se uniu mais ainda. A Letícia não tem igual! (ISADORA)

Sim, toda a família estava sofrendo junto. A gente precisava se unir... (DANIELA)

Quando a família se viu frente às ameaças do adoecimento por câncer, ela fortaleceu seus laços e uniu-se ainda mais, o que se deu de diferentes formas e por distintas razões, destacando-se os laços afetivos como o amálgama familiar.4

A “barriga solidária”: ressignificação da vida no processo de adoecimento

Em razão do avanço do adoecimento, com o câncer invadindo adjacências, Isadora, na sequência, foi encaminhada a um centro de atenção à saúde de maior complexidade para realização da histerectomia. Nessa ocasião, lhe foi proposta a alternativa da gravidez de substituição, com o intuito de permitir que o sonho ameaçado de maternidade fosse concretizado.

Destaca-se que, dentre os cuidados oncológicos, considerando-se o comprometimento da fertilidade, além da cura da patologia, a equipe multidisciplinar, na ótica de uma atenção integral à saúde reprodutiva, deve se preocupar com a qualidade de vida da pessoa em longo prazo, preocupando-se precocemente com a preservação da fertilidade do paciente.6,13 Dentre as técnicas utilizadas para preservar ou recuperar a fertilidade em meninas e mulheres que são submetidas a tratamento de câncer estão o congelamento de embriões, tecido ovariano, óvulos e transposição dos ovários em caso de radioterapia,6 o que corresponde ao caso em análise.

Nessa perspectiva terapêutica, a família narrou que o médico informou que, no procedimento de histerectomia, poderia “erguer” os ovários, preservando os óvulos, o que possibilitaria a fertilização in vitro para uma posterior gravidez de substituição. Ademais, foram informados que a gestante substituta deveria ser alguém da própria família. Essa alternativa, de início, foi geradora de angústia, visto que a irmã, familiar mais próxima na percepção de Isadora, já havia feito tratamento para o câncer do útero e sua mãe e sua sogra não estavam mais em idade reprodutiva. Além disso, o esposo de Isadora não tinha irmãs, situação que nublou a perspectiva dada pelo médico.

Diante de tudo isso, Isadora reuniu novamente a família para contar que teria que fazer uma histerectomia, pois sua vida já estava em risco e, nesse momento, foi surpreendida com a proposta da cunhada (Daniela), como se observa na narrativa a seguir:

Lembro até hoje o dia que eu liguei desesperada para o Pedro Henrique. Eu disse: “hoje vai ser o dia que vou contar para a família, vamos nos reunir todo mundo lá na mãe”. Eu queria que meus irmãos estivessem juntos, porque contar para meus pais que eu tinha realmente que tirar o útero, isto foi o pior. Depois a Daniela me chamou lá no quarto e me falou: “ó Isadora faça o que tiver que fazer, mas não deixe o útero, se tiver que tirar, tire, se o médico disse para tirar, tire, porque eu vou ser a barriga solidária de vocês. Eu sei o que é querer ser mãe, eu já sou de dois. Então, eu sei o que é, e se posso te ajudar, eu vou te ajudar a ter um filho”. (ISADORA)

Novamente emergiu a função de amparo dos componentes de uma família em vivência que trazia sofrimento. Esse amparo é importante para a pessoa doente sentir-se segura ante as decisões que precisam ser tomadas e para garantir o reequilíbrio familiar. Este altruísmo familiar se faz presente na compreensão das emoções e nas relações estabelecidas pelo sistema familiar, por meio da manifestação de afeto, na compreensão do outro, na sensibilidade e flexibilidade nas relações familiares.14 E neste estudo, a valoração de atributos como a solidariedade e a empatia foi manifestada na atitude de Daniela quando se propôs a ser a “barriga solidária”.

Uma mãe sabe o que é a dor de outra mãe. (CARMEM)

A dor dela era a nossa dor, embora não fôssemos irmãs, era como se fosse, eu sentia a dor dela também. Eu me colocava no lugar dela. Quem ia doar? Porque a irmã e a sogra não podiam. Deus me tocou: “‘você vai lá e vai se oferecer, você vai fazer isso”. (DANIELA)

Sentimentos religiosos e/ou de fé foram contundentes nesta narrativa familiar, os quais parecem ter norteado a decisão de Daniela em se oferecer para a gravidez de substituição. Nesse sentido, Daniela relatou que esse fora um chamado de Deus, uma forma de cumprir a promessa que havia feito quando sua filha havia nascido:

A Viviane nasceu com um pezinho torto e se ela caminhasse, se ela se recuperasse, prometi que ia ajudar alguém. Não sabia como, nem de que forma, mas o Senhor ia me dizer. Então, foi quando apareceu a possibilidade da barriga solidária da Isadora. (DANIELA)

Isadora, diante da proposta que reavivou sua esperança de maternidade, ficou radiante e a família, por sua vez, foi tomada pela surpresa, mas também pela gratidão.

Eu aceitei na hora, porque já era uma esperança, uma luz que estava brilhando! (ISADORA)

Eu disse para Daniela: “não tenho como te agradecer, não tenho como te pagar isso que tu estas fazendo pela minha filha. Deus vai te dar cada vez mais luz e saúde”. (MARIA INÊS)

Como Isadora viu na proposta da cunhada a possibilidade de concretizar seu sonho de maternidade por meio da “barriga solidária”, aceitou realizar a histerectomia e durante o processo cirúrgico solicitou insistentemente que o médico cuidasse de seus ovários, pois neles estava a esperança de uma futura gestação.

No dia da cirurgia eu dizia: “doutor, cuida meus ovários”. Eu peguei na mão do anestesista e disse: “por favor! Pede para o doutor cuidar meus ovários, por favor!” (ISADORA)

A família relatou que a histerectomia foi suficiente como conduta clínica para tratar o caso de Isadora, não necessitando de radioterapia e/ou quimioterapia, o que refletiu em alegria para todo o sistema familiar.

Começou a vir luz quando ficamos sabendo que não precisava fazer nem quimioterapia, nem radioterapia. Aquela alegria dela já era nossa alegria, porque sabíamos que estava mais perto ainda da barriga solidária [...]. (DANIELA)

Após a recuperação da histerectomia, Isadora e seu esposo procuraram Daniela para confirmarem se ainda estava disposta a ser a “gestante substituta”.

Lembro que eles foram até a minha casa e a Isadora falou: “Nós estamos aqui para saber se ainda está de pé a proposta da barriga solidária, pois já se passaram quatro meses desde que você se ofereceu”. E eu: “claro, é para ontem”. (DANIELA)

Para dar início ao processo da gravidez de substituição, o casal recorreu ao Sistema Único de Saúde (SUS). Porém, foi informado de que era um processo burocrático e que costumava ser demorado, até dez anos, tempo que pode impossibilitar a gestação para uma mulher em idade mais avançada ou que necessite de um prazo menor para a terapêutica em virtude de alguma doença que possa levar à infertilidade. Outra dificuldade é a escassez de hospitais de referência em razão da não priorização de tecnologias de reprodução assistida no âmbito do SUS, o que dificulta o acesso por questões de ordem econômico-financeira, assemelhando-se a cenários internacionais.15-16

Diante disso, buscaram uma clínica privada na região do Planalto Central do Rio Grande do Sul, porém em virtude do valor do tratamento, Isadora e Daniela ficaram desesperançadas.

Chegamos à casa dos meus sogros e ele falou: “E agora, o que falta, minha nora?” “Agora, sogro, falta o dinheiro”. Então eles falaram: “Então não falta mais. Nós vamos nos ajudar e vai estar aqui o dinheiro que vocês precisarem”. (ISADORA)

Mais uma vez a família, regida pelo sentimento de empatia, se uniu mobilizando-se em prol da ajuda financeira relativa à gravidez de substituição.   O engajamento familiar, a participação e a flexibilidade emocional foram fundamentais a fim de assegurar o reequilíbrio do sistema familiar,14 sendo possível dar seguimento ao processo, que iniciou pelo tratamento hormonal.

Fiquei uns dez dias fazendo as injeções de hormônio. No primeiro dia eu vim aqui na Daniela, porque a funcionária da clínica me perguntou: “você vai ao hospital fazer a injeção ou tu mesma faz?” Daí eu disse: “Vou fazer em casa”. E pensei: “A Daniela é mais calma, ela vai conseguir fazer a injeção em mim”. Mas quando foi para aplicar ela me disse: “não consegui abrir a ampola... quebrou. Meu Deus do céu e agora?” Então, eu fui forte, e pensei: “É para o meu filho!” Sentei à mesa, concentrei, consegui abrir outra ampola. E tinha a sacolinha, eu guardava as injeções e o gelo numa sacolinha. (ISADORA)

Sim, era um sonho que estava ali guardado na sacolinha. (LETÍCIA)

Sim, era. Estava ali um sonho. Meu Deus do céu, eu protegia, cuidava tanto daquela sacola. Toda noite, às nove horas, eu tinha que fazer a injeção.  Foi um sufoco... E é tudo muito caro, tinha que dar certo... Eu sempre cuidei direitinho do horário da aplicação. A última foi bem complicada, a última era bem dolorida, bem grossa, foi terrível. (ISADORA)

Percebe-se, na “proteção” à sacolinha, na observância rigorosa do horário para aplicação da injeção e na reunião de Isadora com seu esposo e sua cunhada para a primeira administração do hormônio, comportamento com elementos rituais, realizado em âmbito privado. Os rituais fazem parte de sociedades humanas, pequenas ou grandes, representam o modo como os grupos sociais celebram, mantêm ou renovam o mundo em que vivem e a forma como lidam com os riscos e as incertezas que ameaçam esse mundo.17

O ritual se reveste de dimensões sociais, psicológicas e simbólicas e tem como principal característica a repetição e o uso de determinados símbolos.17 Neste caso, ele envolveu pessoas chave no processo de três nascimentos: de uma criança; de uma mãe que, por meio da empatia, da solidariedade e do altruísmo de sua cunhada, se distanciava de um adoecimento e da infertilidade; e o de uma nova família, no sentido mais estrito que essa expressão tem, visto que a gravidez de substituição representava novidade no cenário em estudo e parece ter inaugurado novos padrões de relacionamento e de conceitos no seio desse sistema familiar.

O fato de alguns participantes deste estudo reunirem-se para a primeira administração de hormônios na mãe biológica, para além de um efeito específico (a ovulação), e que poderia ser realizado sem a presença dos demais, evidenciou uma escolha coletiva de como lidar com um risco concreto que ameaça e vulnerabiliza o desejo de maternidade de Isadora. Por outro lado, é uma forma simbólica que buscou a superação dessa ameaça. Prevaleceu nessa atitude, a ideia de que todos precisavam estar juntos nesse momento. Assim, a administração da primeira injeção se tomou de um simbolismo que fortaleceu a família presente no processo, revigorando o sentido de união familiar.

Após o término do tratamento hormonal, Isadora e Daniela retornaram à clínica para uma nova avaliação, quando foi constatado que seu ovário direito havia produzido doze óvulos e o esquerdo dois. Nessa ocasião o médico agendou a punção para a coleta ovular, bem como a coleta do esperma. A fertilização in vitro foi realizada, com o acompanhamento da evolução dos embriões para, então, acontecer a transferência de um embrião à Daniela.

Quatro dias após a coleta, quando fizemos a transferência, restavam cinco, dos doze embriões, e ele transferiu um. Nós estávamos na dúvida, um ou dois? Então entramos nesse conflito. A Isadora disse: “mas o Marcelo quer dois, vamos colocar dois?”. Daí eu falei: “não sei... vamos colocar um”. (DANIELA)

A gente tinha que entrar num consenso, porque era ela quem iria gestar. A gente queria, mas tinha que pensar que ia ser ela. Aí o doutor disse: “é uma gravidez mais complicada, existem alguns riscos”. Ele brincava: “olha o tamanho dela, vocês dois são enormes, como vai ter duas crianças na barriga dela?”. (ISADORA)

Compreende-se desse fragmento de narrativa que, mais uma vez, Isadora e Marcelo consideraram a opinião de Daniela e ponderaram, para a decisão quanto à transferência dos embriões e os riscos que ela enfrentaria, caso houvesse a transferência de dois embriões. Em contraposição, estudo18 assinala que gravidez de substituição pode representar ameaça aos direitos humanos, com desrespeito a sua dignidade, sua singularidade, suas emoções e sua dimensão corporal. Contudo, os valores referentes à empatia e ao altruísmo emergentes neste estudo coadunam com os resultados de estudo19 que analisa os aspectos psicossociais da gravidez de substituição. O referido estudo salienta que, normalmente, os sentimentos da gestante substituta são positivos.

A gravidez de substituição envolvendo membros de uma mesma família representou, ao contrário, um elemento de reforço a valores de respeito, de preocupação e de cuidado, os quais contribuíram à coesão familiar, importante para o amparo necessário nos processos de adoecimento e reestruturação do sistema familiar.

A família mencionou que, após a realização da transferência do embrião, foi necessário aguardar doze dias para, então, fazer o teste de gravidez.

Fizemos logo o de sangue. E deu negativo. Aí liguei para o Doutor. (ISADORA)

Tinha que fazer todo o processo de novo. (CARMEM)

Isso foi horrível! Parecia que tinha acabado o mundo, era toda a esperança de vocês. (ÁGUIDA)

A Águida chegou bem de boa e falou: “mas vocês nunca pensaram que podia não dar certo” e, então, todo mundo... puf. (LETÍCIA)

Após a primeira tentativa sem sucesso, Daniela e Isadora resolveram manter a nova tentativa restrita ao núcleo familiar.

Decidimos guardar só para nós, da família, porque tem muita gente que passa positividade, mas também tem gente negativa. (ISADORA)

Porque assim não teria aquela pressão de ter que dizer “ah, não deu certo!” (DANIELA)

Na segunda tentativa decidiram-se pela transferência de dois embriões e, desta vez, Isadora conseguiu acompanhar o procedimento.

Desta vez eu consegui entrar com a Daniela. (ISADORA)

Daí eu disse: “é muito importante, porque ela é a mãe”. (DANIELA)

Eu falei: “eu tenho que entrar, sou a mãe, quero participar”. Não era para ser na primeira tentativa, porque a mãe não estava junto. (ISADORA)

O fato de Isadora ter o direito e sentir necessidade de participar desse momento se justificou e se reforçou na medida em que o amparo e o conforto aos protagonistas da gravidez de substituição entrelaçaram-se à união, ao vínculo familiar, ao exercício da fé e da oração, elementos essenciais no enfrentamento da complexidade e singularidade da vivência, no caso em estudo. Desta forma, é necessário entender que o sistema familiar e a espiritualidade fazem parte do cotidiano das pessoas, sendo fundamental considerá-lo no planejamento do cuidado.20

Onze dias após a transferência embrionária, Daniela teve um pequeno escape de sangue via vaginal e decidiu-se por fazer o teste de farmácia sem o conhecimento da cunhada a fim de não a frustrar, caso resultasse negativo.

Eu fui fazer o teste de farmácia, de noite, escondida para não frustrar eles. Vi mal e mal um sinalzinho. Quando o Pedro Henrique chegou eu falei: “Tu estás vendo alguma coisa?”, e ele disse: “aparece aqui um sinalzinho”. Liguei para Isadora e falei: “Fiz o teste”, e ela já começou a chorar. (DANIELA)

Era meia noite e sete e eu falei para o Marcelo: “vamos, vamos para lá, porque deu positivo, vamos”. E eu e o Marcelo levantamos faceiros. Eu bem louca, eu estava só de calcinha e o Marcelo disse: “calma Isadora, tu vais assim?”. Eu disse: “vou”. E ele: “mas vai colocar uma roupa primeiro. Calma que já estamos indo”. (ISADORA)

 Eles chegaram e eu mostrei para ela. (DANIELA)

Então eu falei para ele: “Eu estou vendo, tu estás vendo, Marcelo? Vamos na farmácia comprar outro teste para a Daniela fazer de novo amanhã de manhã, porque a urina da manhã é mais concentrada”. A gente nem dormiu naquela noite. Nós ficamos nos falando pelo WhatsApp, porque ninguém conseguia dormir. (ISADORA)

No outro dia bem cedo eu levantei e fiz outro teste e neste apareceu bem o sinal de positivo. Eu tirei foto, fiz uma setinha e mandei para ela”. (DANIELA)

Ela ligou e disse: “oi mamãe!” Chego me arrepiar. “Marcelo, acorda!”. Coitado do Marcelo, ele sofreu comigo nas horas ruins e nas horas boas. Um marido excelente e, agora, um paizão que não tem igual! (ISADORA)

Daniela, ao decidir fazer o teste de gravidez sem o conhecimento da família, executou um cuidado focado na proteção familiar, a fim de evitar uma segunda frustração à Isadora e ao sistema familiar como um todo, caso o teste resultasse negativo. Sentimentos de preocupação com o outro são produtores de amparo, o que reflete em proteção e contribui no fortalecimento da família como sistema e evidencia que cada integrante é um nó, que ligado com os demais familiares e com outros, de sistemas externos, formam uma rede provedora de cuidados que necessita ser considerada pelos profissionais do sistema de saúde.4-5

Com o resultado positivo do segundo teste de gravidez, Isadora preocupou-se em dar à notícia aos demais componentes do sistema familiar.

Quando a Daniela me ligou, eu liguei cedo para a Letícia e disse que tinha dado positivo e que eu iria fazer uma surpresa para os avós. Convidei elas e meu pai e minha mãe para irem a minha casa ao meio-dia. Chegaram e eu disse: “agora eu tenho uma coisa para falar para vocês”, e entreguei um pacotinho para minha mãe, que ela nem conseguia abrir. Quando abriu foi aquela sensação! Era uma roupinha de bebê. Foi uma gritaria, uma emoção. Então, a primeira parte já tinha passado, a segunda ia ser à tardinha na casa da sogra. Aí eu cheguei, deixei aquele pacotinho no sofá, a sogra olhou o pacote e ficou meio desconfiada. Quando eu entreguei e eles abriram, foi aquela alegria - seu Gomercindo, a Nádia, o Jardel. Foi uma emoção! (ISADORA)

Com a confirmação da gravidez, Daniela também foi contar a seus pais e, em seguida, noticiou aos filhos, explicando-lhes que ela estava grávida de um bebê que não seria irmão deles, mas primo, e que ainda era um pouco cedo para contar a novidade na escola.

Abordar sobre tecnologias de reprodução assistida com crianças em idade pré-escolar é complexo, visto que explanar que a mãe terá um bebê, mas que este não será um irmão pode causar desorientação e confusão. Portanto, no processo de revelação, a família poderá precisar do apoio de profissionais especializados. Salienta-se a necessidade de a enfermagem se fazer presente no momento da revelação familiar, por meio do suporte científico necessário para sanar possíveis dúvidas da família, bem como no desenvolvimento do vínculo com a mãe biológica e substituta, para que ambas possam ser acolhidas e orientadas.21-22

Isadora e Daniela receberam apoio de amigos e familiares ao longo do processo, mas também passaram por dificuldades e angústias, relacionadas a preconceitos, críticas e comentários negativos. Apesar disso, se mantiveram firmes na decisão e na concretização do sonho da maternidade, por meio do amparo familiar e na fé de que seria possível.

A despeito das dificuldades do início do processo terapêutico, a gestação foi tranquila, sem maiores intercorrências ou preocupações. Entretanto, no último trimestre da gestação, Daniela manifestou alguns sinais e sintomas que anteciparam o parto. Vale ressaltar que o parto foi realizado em município do Noroeste do Rio Grande do Sul, onde a gestante substitutiva reside e não foi permitida a entrada da mãe biológica no centro cirúrgico para acompanhar a cesariana, justificado pelo profissional obstetra de que se tratava de uma situação de risco e que seria melhor para todos que a entrada se desse após o nascimento e os primeiros cuidados com a criança. Esse impedimento foi aceito pela família sem quaisquer questionamentos, como algo totalmente legítimo.

Percebe-se que a decisão da não entrada da mãe da criança no centro obstétrico ancora-se no modelo biomédico de atenção à saúde e não na premissa de que a ordem natural das coisas seria de que a mãe estivesse presente no nascimento de sua filha. Ou, ainda, que a parturiente, no caso uma gestante substituta, deveria ter seu direito a um acompanhante garantido, o que, indiretamente, privilegia o cuidado à família e se afasta de práticas correntes – padronizadas, autoritárias, impessoais e frias.23

Após o nascimento de Lara, Isadora e Marcelo, assim como o restante da família, continuaram preocupados e prestando apoio à Daniela, cabendo ressaltar que Lara deu alta hospitalar juntamente com sua tia (gestante-substitutiva).

O Marcelo ficava com a Daniela, enquanto eu ficava com a Lara, aí depois o Marcelo ficava com a Lara e eu ia ficar com a Daniela. Eu cuidava dela e ela me ajudava a cuidar da Lara. (ISADORA)

Nós não podíamos deixar ela sozinha com as crianças. Então, eu ficava com ela direto. (MARIA INÊS)

Nós tínhamos a preocupação de cuidar da Lara e da Daniela. (LETÍCIA)

As narrativas evidenciaram o apoio familiar à Daniela no puerpério, pois todos compreendiam e manifestavam grande preocupação com sua saúde psicológica, porque, por mais que ela estivesse ciente de sua decisão em relação à gravidez de substituição, o vínculo com a criança estava estabelecido.

E uma coisa que eu tenho na minha consciência, bem tranquila, é que eu nunca me dirigi à Lara como mãe, como minha filha. Eu deixava que a Isadora conversasse com a Lara na minha barriga, para ela criar vínculos maternos. Eu tive uma convulsão logo depois que dei alta do hospital, fiz uma tomografia e apareceu uma sinusite. Tinha que fazer um tratamento e não poderia amamentar. Então, eu optei pelo tratamento. Amamentei até o 4º dia. (DANIELA)

Considerando-se a vivência em análise, os cuidados puerperais se remeteram, especialmente, à dimensão emocional da gestante substituta que, a partir do nascimento, se separaria da criança por ela gerada. A família entendia essa situação e tentava auxiliar nesse momento de ruptura de laços. Além disso, apreendeu-se que, neste caso, a opção por não continuar amamentando, contrariando o jargão de que “quem ama amamenta”, configurou-se em ato de puro amor, representado pela entrega de Lara à Isadora, que materializou o tornar-se mãe por um ato de desprendimento, altruísmo e empatia de sua cunhada. Daniela, tia e hoje madrinha de Lara, em atitude “maternal” deu à Lara a possibilidade de vincular-se a sua verdadeira mãe. Com esta atitude, Daniela evidenciou que entende o lugar que lhe cabe na história familiar: a da tia-madrinha que possibilitou a vinda da sobrinha-afilhada ao mundo.

   Essa história da Lara é tão interessante e ensina tanta coisa. (ÁGUIDA)

Principalmente a união da nossa família. União, abdicação, dedicação, porque ela foi desejada. (LETÍCIA)

A Lara foi uma pessoa muito desejada, não só pela Isadora e pelo Marcelo, era todo mundo torcendo para que tudo desse certo e isso uniu, uniu muito a família. (ÁGUIDA)

Assim, a vivência da família em estudo pode ser sintetizada na ressignificação do adoecimento e do próprio sentido de família, evidenciando que a união é o tom vital da narrativa familiar, significado central que contribuiu no reequilíbrio do sistema familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo revela que a família ampliada, na vivência de uma gravidez de substituição no contexto do adoecimento por câncer, experimenta sentimentos de proteção, respeito e amparo, identificados não só no sofrimento causado pelo diagnóstico do câncer e da infertilidade, como também durante o processo de fertilização, gestação e nascimento. Esses sentimentos contribuem para a união da família que, por sua vez, é essencial para o fortalecimento da pessoa acometida pelo câncer, para a decisão de uma das familiares em se oferecer como gestante substituta e, também, para o reequilíbrio do sistema familiar abalado pela ameaça do câncer e pela novidade de uma gravidez fora dos padrões usuais.

Na identificação dos motivos que determinaram a decisão pela gravidez de substituição, percebe-se que o altruísmo, a solidariedade, a empatia e a fé foram os mobilizadores desse processo. O altruísmo e a empatia emergem, em especial, na medida em que um dos componentes do sistema familiar abdica da sua rotina diária, saindo do conforto cotidiano, para materializar o desejo de maternidade de um de seus membros. A fé ancora as decisões e as expectativas relativas ao adoecimento e à gravidez de substituição, amenizando o sofrimento da família e redirecionando-os para o reequilíbrio.

Os resultados contribuem na medida em que proporcionam conhecer a vivência da família ampliada diante da gravidez de substituição em decorrência do adoecimento por câncer, destacando-se de que no Brasil são poucas as produções no campo da enfermagem que tratam desta temática, e sob esta ótica, o que o torna emblemático e inédito.

Na pesquisa e no ensino, especialmente da enfermagem, área de formação das autoras, o estudo inova e acrescenta na medida em que, por meio de aportes do referencial de família, subsidia a ampliação da compreensão sobre os elementos implicados na produção do cuidado em saúde em caso de gravidez de substituição. Na gestão da saúde e assistência em enfermagem, contribui à formação de profissionais mais comprometidos e convergentes às demandas sociais singulares, em virtude de que, cada vez mais, casais e famílias poderão vivenciar algum processo semelhante ao estudo em questão.

 Aponta-se como limitação deste estudo o fato de o mesmo ter sido realizado somente com uma família ampliada, o que limita as possibilidades de generalizações.

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Recebido em: 02/11/2020

Aceito em: 17/06/2021p

Publicado em: 30/06/2021



[1] Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Palmeira das Missões, Rio Grande do Sul (RS). Brasil (BR). E-mail:  natalia-mergen@hotmail.com ORCID: 0000-0003-1293-089X

[2] Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Palmeira das Missões, Rio Grande do Sul (RS). Brasil (BR). E-mail: cabralfernandab@gmail.com ORCID: 0000-0002-4809-278X

[3] Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Palmeira das Missões, Rio Grande do Sul (RS). Brasil (BR). E-mail: leilahildebrandt@yahoo.com.br ORCID: 0000-0003-0504-6166

[4] Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Palmeira das Missões, Rio Grande do Sul (RS). Brasil (BR). E-mail: andressa-da-silveira@ufsm.br ORCID: 0000-0002-4182-4714

[5] Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria, Rio Grande do Sul (RS). Brasil (BR). E-mail: nara.girardon@gmail.com ORCID: 0000-0002-3604-2507

[6] Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Palmeira das Missões, Rio Grande do Sul (RS). Brasil (BR). E-mail: isabelvan@gmail.com ORCID: 0000-0002-3585-2049

 

Como citar: Mergen NT, Cabral FB, Hildebrant LM, Silveira A, Girardon-Perlini NMO, Van der Sand ICP. J. nurs. health. 2021;11(2):e2111219967. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/19967





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