Monfrim XM, Pinto AH, Jeske H, Jardim VMR, Lange C. Monitoramento telefônico de dois casos de infecção pelo novo Coronavírus: relato de experiência. J. nurs. health. 2020;10(n.esp.):e20104044
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/19946
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Monitoramento telefônico de dois casos de infecção pelo novo Coronavírus: relato de experiência
Telephone monitoring on two cases of infection by the new Coronavirus: experience report
Monitoreo telefónico de dos casos de infección por el nuevo Coronavirus: reporte de experiencia
Monfrim, Xênia Martins[1]; Pinto, Andressa Hoffmann[2]; Jeske, Henrique[3]; Jardim, Vanda Maria da Rosa[4]; Lange, Celmira[5]
RESUMO
Objetivo: apresentar as experiências de duas enfermeiras sobre o monitoramento telefônico de dois casos de infecção por Coronavírus na região Sul do Rio Grande do Sul. Método: relato de experiência de duas enfermeiras atuantes na Estratégia de Saúde da Família nos meses de maio e julho de 2020. Resultados: o primeiro caso se trata do monitoramento da família de um homem, proveniente de outro Estado, que foi a óbito. O segundo caso se refere a uma gestante que evoluiu para internação hospitalar por agravo de sintomas, após três dias do resultado positivo do exame. No início desse processo o sentimento era de confusão, afinal tratava-se de uma doença aguda, agressiva e desconhecida. Por vezes, o sentimento de solidão verbalizado pelos monitorados afetou os profissionais. Conclusões: emergiram das experiências, aspectos sobre isolamento e exclusão social das pessoas contaminadas, além de insegurança, medo e sobrecarga, por parte dos profissionais.
Descritores: Atenção primária à saúde; Morte; Pandemias; Monitoramento
ABSTRACT
Objective: to present the experiences of two nurses about monitoring by telephone two users infected with Coronavirus in the south region of Rio Grande do Sul. Method: experience report of two nurses working in the Family Health Strategy in the months of May and July, 2020. Results: the first case is about monitoring the family of a man, from another State, who died. The second case refers to a pregnant woman who evolved to hospital for worsening of symptoms, after three days with a positive test result. Conclusions: emerged from the experiences, aspects about isolation and social exclusion of the infected people, as well as insecurity, fear and overload, by the professionals.
Descriptors: Primary health care; Death; Pandemics; Monitoring
RESUMEN
Objetivo: presentar las experiencias de dos enfermeras sobre el seguimiento telefónico de dos usuarios infectados por Coronavirus en la región sur de Rio Grande do Sul. Método: relato de experiencia de dos enfermeras trabajando en la Estrategia Salud de la Familia en los meses de mayo y julho de 2020. Resultados: el primer caso es el seguimiento de la familia de un hombre, de otro Estado, que falleció. El segundo caso se refiere a una mujer embarazada que evolucionó al hospital por empeoramiento de los síntomas, después de tres días del resultado positivo de la prueba. Conclusiones: surgieron de las vivencias, aspectos sobre el aislamiento y la exclusión social de las personas infectadas, así como la inseguridad, el miedo y la sobrecarga, por parte de los profesionales.
Descriptores: Atención primaria de salud; Muerte; Pandemias; Monitoreo
INTRODUÇÃO
Em oito de dezembro de 2019, em Wuhan na província de Hubei na China detectou- se a síndrome respiratória aguda grave causada por um novo tipo de Coronavírus, aproximadamente um mês depois, em 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a infecção pelo Novo Coronavírus, denominado de Coronavírus da Síndrome Aguda Respiratória grave 2 (SARS-CoV-2) como emergência de saúde pública de caráter internacional.1
Em fevereiro de 2020 a OMS informou o primeiro caso no Brasil, e em março de 2020 o SARS-CoV-2 foi declarado como pandemia pelo órgão mundial, sendo que em 12 de março de 2020 já eram declarados 125.048 casos e 4.613 mortes notificadas em todo o mundo.¹ Em 30 de novembro de 2020, o mundo apresentava 62.195.274 casos confirmados e 1.453.355 mortes notificadas, já no Brasil tínhamos 6.290.272 casos confirmados e 137.139 mortes notificadas.2
Pandemias são enfermidades epidêmicas de grande disseminação em largos trechos geográficos. Na prática, apresentam como desfecho um grande número de mortes em um curto espaço de tempo, o que pode gerar problemas psicológicos diversos frente ao processo de luto que se torna, muitas vezes, inevitável. 3
Os sintomas para diagnóstico da Coronavírus da Síndrome Aguda Respiratória grave 2 (SARS-CoV-2) se mostram variáveis, visto o vírus ter sofrido mutação genética, porém sabe-se que em relação aos fatores de risco, se observa que ser portador de comorbidades prévias e apresentar idade avançada pode predispor a quadros mais graves e piores prognósticos da infecção, o que torna imprescindível o uso de medidas preventivas para controle do vírus.4
O serviço de telemedicina tem sido uma alternativa de melhoria de acesso ao cuidado médico, trata-se de um serviço que surgiu nos anos 1950, mas apresentou evolução nos anos 90 com o surgimento da internet, o que facilitou a comunicação entre profissional e paciente. Torna-se importante buscar por formatos, aplicações e maneiras seguras e eficazes em que o serviço de teleconsulta seja benéfico às pessoas.5-6 No contexto da pandemia esses serviços assumem papel de protagonismo em relação ao monitoramento de pessoas contaminadas, já que o isolamento social foi imposto a todos.
Nos contatos telefônicos de monitoramento, as pessoas positivas para Covid-19 tinham perguntas norteadoras que estavam relacionadas à dificuldade e/ou esforço respiratório, sobre extremidades e boca estarem de coloração arroxeada e caso apresentassem algum agravo, estes usuários foram orientados a procurar a Unidade de Pronto Atendimento do Município.7
Em outro estudo, usuários monitorados demonstravam melhora dos sintomas e sentimento de gratidão aos profissionais pela prestação desta espécie de serviço, uma vez que durante as ligações era possível tirar dúvidas sobre os sintomas e as características da doença, o que garantia a continuidade do cuidado mesmo este não sendo presencial.8
Objetiva- se apresentar as experiências vivenciadas por duas enfermeiras durante a pandemia no monitoramento via atendimento telefônico de dois casos de infecção por Coronavírus, na região Sul do Rio Grande do Sul.
MÉTODO
Trata-se de um relato de experiência de duas enfermeiras atuantes na Estratégia de Saúde da Família nos meses de maio e junho de 2020. O primeiro caso trata-se do monitoramento da família de um homem proveniente de outro estado que foi a óbito. O segundo refere-se a uma gestante que evoluiu para internação hospitalar por agravo dos sintomas após três dias do resultado de exame positivo.
Em abril de 2020 o município no qual o estudo foi realizado lançou a primeira nota técnica de enfrentamento ao Covid-19 construída pela Vigilância em Saúde9, nela foi estabelecido que todo usuário atendido em sistema de saúde público ou privado com síndrome gripal deveria ser monitorado pelas equipes de atenção primária em saúde via telefone ou visita domiciliar a cada 48 horas ao longo de 14 dias.
O município em que a experiência foi vivenciada tem em acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 343.132 habitantes, dado utilizado para os repasses financeiros. Conta com 51 unidades básicas de saúde sendo que 42 unidades atuam sob regime de Estratégia de Saúde da Família (ESF), totalizando 56 equipes de saúde.10
A unidade básica de saúde (UBS) de atuação das duas enfermeiras funciona como ESF há aproximadamente cinco anos, e conta com duas equipes que são compostas cada uma por uma enfermeira, uma auxiliar de enfermagem, um médico e divididos em ambas as equipes, sete agentes de saúde. Os profissionais supracitados cumprem regime de 40 horas semanais. A unidade é integrada também por duas burocratas, uma higienizadora e uma dentista.
Nesse período os casos suspeitos e positivos de COVID-19 notificados à Vigilância Epidemiológica eram repassados às equipes das unidades de saúde para o monitoramento via telefone, independente do serviço de teleconsulta ofertado pelo município. O critério utilizado para o repasse foi o de delimitação geográfica por aproximação das unidades de saúde com o endereço dos usuários acompanhados.
O estudo focou na descrição da experiência profissional no contexto em questão. Serão descritos os seguintes casos: monitoramento dos familiares de um homem jovem que faleceu no município uma vez que a esposa também estava contaminada, e o de uma gestante com COVID-19 que foi hospitalizada e posteriormente teve um desfecho de óbito.
Por se tratar de um relato de experiência dispensa-se assim, à necessidade de submissão do projeto a um Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos. Porém, todos os preceitos estabelecidos na Resolução nº 466 de 2012 foram respeitados.11
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Primeiramente, foi realizada uma breve apresentação do contexto de monitoramento instituído na unidade de saúde diante da pandemia de COVID-19, após os casos foram descritos separadamente, abordando dados necessários para a compreensão e entendimento do leitor.
Contextualizando as ações iniciais de combate à pandemia na UBS
A princípio, decorria mais um ano típico na rotina de atividades de uma ESF, sem que se esperasse o surgimento de uma pandemia carregada da forma mais literal de seu significado. Até o momento, se crê que nenhum sistema de saúde possuía ou possui todos os recursos suficientes para lidar com o efeito que a SARS-CoV-2 traz à população infectada.12-13
Monitorar, acompanhar e testar são os verbos mais proferidos e executados na rotina da enfermagem na atenção básica neste ano. Atuar no modelo de ESF já pressupõe ser responsável pelo acompanhamento dos usuários de forma contínua, mas o cenário apresentado tem sido completamente diferente. O modelo torna- se uma ferramenta de grande importância no combate à pandemia já que, rotineiramente, realiza busca ativa de casos, educação em saúde, orientações sobre isolamento de casos positivos e seus familiares.14
No início do processo de monitoramento o sentimento era de confusão. Não se sabia como proceder, o que e como questionar, afinal se tratava de uma doença aguda, agressiva e desconhecida. Ao passo que os números de infectados começaram a aumentar consideravelmente na cidade, os monitoramentos foram repassados às Unidades de Saúde mais próximas do endereço de residência das pessoas.
O modo como tudo começou foi abrupto, não havendo em um primeiro momento nenhum tipo de “treinamento” ou protocolo local definido para realizar o monitoramento telefônico. As notificações de casos testados passaram a ser enviados via aplicativos de mensagens instantâneas pela chefia imediata. As informações obtidas diziam respeito ao nome da pessoa, telefone, data do início dos sintomas e dia de realização do teste, em muitos casos o paciente era quem informava o resultado de seu teste. O primeiro contato com alguém positivo para SARS-CoV-2 gerou muito receio acerca do que falar, do que perguntar e de como agir, pois, como já mencionado, tratava-se de uma doença desconhecida.7
A abordagem via telefone, apesar de comum e amplamente divulgada, gerou insegurança e receio na forma de abordagem, pois acolher, avaliar e definir condutas apenas ouvindo exige do profissional expertise e sensibilidade simultaneamente. O ouvir ganhou outra dimensão. Conforme sugerido15 o equilíbrio, a força e a entonação passaram a ser mensurados como sinais, afinal não se “via” a pessoa e, tampouco, se conhecia o usuário do outro lado.
As ligações eram feitas ao final de cada turno, um telefone móvel foi disponibilizado pela gestão para tal tarefa, e as enfermeiras revezavam o seu uso. De acordo com o protocolo estabelecido pela vigilância em saúde do município, o monitoramento deveria ocorrer a cada 48 horas, uma ficha de acompanhamento também foi disponibilizada para registro da chamada e posterior envio à vigilância epidemiológica. Nesse sentido, corrobora-se com a literatura, uma vez que demanda gerada aos profissionais da atenção básica, devido à pandemia, é apenas uma das atribuições destes profissionais, uma vez que as rotinas na unidade de saúde são mantidas.8
Situações vivenciadas nos atendimentos telefônicos aos usuários com COVID-19
O primeiro caso vivenciado foi o monitoramento da família de um homem, o qual tinha menos de quarenta anos de idade e havia chegado na cidade há poucos dias para trabalhar, proveniente de outra região do país e que foi a óbito no serviço de urgência. O acompanhamento realizado foi o de sua família que, no momento em questão, estava residindo na área de abrangência da unidade de saúde. Tratava-se de um total de oito pessoas entre adultos e crianças, dentre eles apenas uma mulher adulta de 30 anos de idade, esposa do homem que faleceu virtude da doença, testou positivo para SARS-CoV-2 apresentando o desfecho de cura sem intercorrências.
O contato inicial apresentou desafios, pois as pessoas encontravam-se em um momento delicado do processo de luto, frente à perda repentina de um ente querido. O estabelecimento da confiança entre enfermeira e usuário foi de suma importância, já que se tratava de um grupo de pessoas provenientes de outra região do país e que residiam a poucos dias na cidade. Suas falas traziam traços de revolta pelo ocorrido, misturadas à desconfiança e à insegurança com o que estava por vir. A rotina de ligação ocorreu a cada dois dias, sendo planejado que as mesmas fossem realizadas ao final de cada turno de atendimento na unidade de saúde.
A partir da terceira ligação a pessoa monitorada relatou que seu esposo estava sintomático durante a viagem entre o município natal e o elencado para trabalhar, e que, ao chegar, iniciou com a exacerbação dos sintomas, o que o obrigou a buscar pelo serviço de urgência. Segundo ela, o mesmo não sabia que estava infectado com SARS-CoV-2, pois a confirmação deu-se apenas após o óbito.
Diante da situação, coube à profissional ter paciência e persistência para, apenas após o quarto contato telefônico do total de sete ligações, foi possível estabelecer um diálogo terapêutico com a pessoa monitorada. A morte repentina do usuário impactou seus familiares recém chegados que, junto à adaptação ao novo ambiente, tiveram de lidar com a discriminação e consequente exclusão social por terem contraído o vírus. Durante o tempo de monitoramento que foram de 14 dias a mulher relatou sentir-se discriminada pelos vizinhos, o que vai ao encontro do descrito em outro estudo que aborda a mesma temática.16
O receio em contatar pessoas contaminadas também foi vivenciado por parte dos profissionais, pois ao ser solicitado que a agente comunitária de saúde fosse até a residência da família monitorada, utilizando todos os equipamentos de proteção individual, a mesma também verbalizou medo e demonstrou resistência. Porém, após apoio e esclarecimento da enfermeira, a mesma cumpriu com a sua função e realizou a visita que, naquele momento, fora necessário para a apreensão de mais informações.
Assim, além de monitorar questões direcionadas a aspectos físicos e estarem atentas aos agravos que indicassem a necessidade do acionamento de algum serviço de saúde, as enfermeiras tiveram de lidar e manejar com questões psicológicas e sociais. Pois, não raro, os diálogos foram direcionados para outras questões que excediam sinais e sintomas, o que exigiu das profissionais o exercício da empatia e a mobilização de recursos ligados a sentimentos. Esse tipo de situação também foi relatada por outros autores como recorrentes em monitoramentos telefônicos.14
Os processos de terminalidade, morte e luto acontecem de forma única em cada indivíduo e é de suma importância reconhecê-los. Observa-se a não existência de uma sequência linear dessas etapas, uma vez que em tempos de pandemia por SARS-CoV-2 a morte ocorre, na maioria dos casos, de forma inesperada; o que torna bastante difícil o preparo de entes queridos para a realização de rituais fúnebres, cujos papéis são muito importantes para algumas famílias, no que tange à superação do luto, além da elaboração do sentido da perda. Dessa forma, o profissional que acompanha estas famílias, em muitos casos por teleconsulta, deve trabalhar o fortalecimento das redes afetivas e não focar na perda propriamente dita.17
Diante da responsabilidade de monitorar usuários infectados e que haviam perdido entes queridos recentemente, o sentimento de medo ante a possibilidade de cometer erros foi algo vivenciado pelas enfermeiras. O medo de errar nas escolhas técnicas é um sentimento que permeia as relações de assistência à saúde rotineiramente, mas em um cenário da pandemia exacerbou-se. Estudos trazem que alguns profissionais apresentaram impactos diretos na sua saúde mental, como sentimentos de medo, desamparo, desesperança.15
O monitoramento do caso completou o tempo estabelecido pelo protocolo instituído9, 14 dias, e na sétima ligação a enfermeira que acompanhou o caso desde o início proveu a alta da usuária. Nessa mesma ocasião foi informada que no dia seguinte a família retornaria para sua cidade natal. O desfecho do caso gerou comoção entre os pares e ambas verbalizaram gratidão pelo acolhimento durante um momento tão doloroso.
A segunda experiência ocorreu no mês de julho e diz respeito a uma mulher de 34 anos que no momento estava gestante. Tratava-se da terceira gestação, com história prévia de um aborto espontâneo e um filho falecido por morte não natural, possuía comorbidades como Diabetes tipo 2 e hipotireoidismo. No momento do primeiro contato apresentava 20 semanas de gestação e estava sendo acompanhada no serviço de alto risco do município. Após o procedimento de rotina de recebimento da notificação e identificação da situação gestacional, não se tardou a comunicação e obtenção de maiores informações sobre a condição da usuária. Ao primeiro contato se observou tratar-se de uma mulher comunicativa e bem articulada com as palavras e que demonstrava tranquilidade e confiança, apesar de ter um diagnóstico positivo para SARS-CoV-2, assim como em outro estudo em que as pessoas contaminadas também demonstravam confiança em um desfecho positivo. 17
Foram realizados três contatos no intervalo de três dias, porém por se tratar de uma gestante a conversa culminou em aspectos ginecológicos e, por um momento, os sinais e sintomas de agravo do SAR-COV-2 deram espaço às questões de pré-natal. Ao ser interpelada a respeito da coloração de suas extremidades, se apresentava dificuldade respiratória e de deambulação a gestante negou qualquer alteração. No atendimento via telefone, uma das limitações centra-se no fato de que se deve confiar na veracidade da informação relatada pela pessoa, diferentemente do atendimento presencial em que o profissional é o avaliador.4 Essas informações, podem ser subestimadas pelo paciente, uma vez que ele não possui formação na área da saúde.
Outra questão desafiadora foi o fato de que usuária residia sozinha, sendo inviável, n momento, solicitar a companhia de algum familiar, pois esta é outra imposição da infecção por SARS-CoV-2, o isolamento. Segundo as informações obtidas nos contatos telefônicos, a mulher havia tido contato no final de semana anterior ao diagnóstico com a mãe, a irmã e com o namorado que residia em outra casa em um bairro próximo ao dela. Diante dessa afirmativa, a orientação foi a de que eles deveriam buscar atendimento do serviço de saúde para avaliação e conduta.
O receio em contaminar outras pessoas impõe à pessoa o isolamento permitindo apenas o cuidado não presencial. No caso relatado, a mulher estava sozinha em casa, o que gerou a necessidade de informar diversas vezes a importância de manter o telefone por perto e de chamar por ajuda, ao menor sinal de agravo da situação.
Diferente do preconizado até o momento, neste caso o monitoramento ocorreu diariamente, pois no entendimento das profissionais indicava a necessidade de se monitorar a pessoa de forma mais intensa, devido à gestação. No segundo contato se notou pela voz da mulher o agravo da situação. Nesse momento, a incerteza do que orientar à paciente foi um dos sentimentos mais presentes, conforme citado na literatura, ao se identificar alguma comorbidade, fragilidade ou piora de sintomas as ligações tendem a ser mais longas, gerando maior desgaste e preocupação ao profissional.7 Diante da confirmação da piora do quadro, a orientação foi chamar o serviço de urgência e solicitar o transporte ao local indicado pelo protocolo para atendimento ao usuário com COVID-19.
Após a solicitação do serviço de urgência, a enfermeira manteve contato telefônico com a gestante até a ambulância chegar em sua residência, para certificar-se que ela estava assistida e seria removida até o serviço de saúde necessário. O monitoramento da enfermeira foi encerrado dois dias após o ocorrido, o contato se deu com a irmã da gestante, que informou que a mesma estava internada no hospital de referência. Após uma semana do último contato com a irmã, via redes sociais das enfermeiras foi identificado o nome da mulher e seu óbito confirmado.
A abstração pela imaginação nos monitoramentos via telefone ganha espaço durante o atendimento, pois a visão é um sentido utilizado durante as avaliações rotineiras para o estabelecimento da conexão com o usuário. Acredita-se que o tele atendimento, apesar de limitador, proporcionou uma experiência diferente do que se vive na rotina da unidade de saúde, o diálogo é o protagonista, a comunicação verbal clara e assertiva se fazem essenciais e a empatia se torna recurso potente.6
A preocupação em ligar novamente, em confirmar o estado de saúde da pessoa, para verificar se está bem gera desgaste e ansiedade ao profissional, pois via telefone o parâmetro e o julgamento partem das referências do usuário ao invés daquelas do profissional. Em se tratando de uma gestante tudo isso ganha maior proporção, pois o senso de responsabilidade duplica, já que que são duas vidas a serem cuidadas. Entre o diagnóstico da doença e o desfecho morte transcorreram cerca de 15 dias.
A solidão verbalizada pelos monitorados atingiu aos profissionais em determinados momentos. As certezas não existiam mais, além da nova tarefa de monitoramento, as profissionais mantiveram sua rotina dentro da unidade, realizando suas atividades rotineiras o que vai ao encontro a outros autores.18
A angústia sentida pelas enfermeiras para incorporar essa nova atribuição à rotina foi desgastante e em muitos momentos um caminho solitário, em que a motivação para seguir foi extraída das falas de agradecimento dos usuários e do apoio mútuo entre colegas de equipe assim como outro estudo.8 Percebia-se satisfação e confiança por parte dos usuários que ao receberem as ligações, notoriamente tinham uma diminuição do sentimento de solidão trazido pelo isolamento social.
Observou-se ainda, durante as ligações com finalidade de monitoramento, que o saber, os questionamentos e as inter-relações deveriam ir além das perguntas sugeridas pelo protocolo, a fim de identificar situações de agravamento de sintomas ou de manejo das famílias com perdas inesperadas causadas pelo Covid-19. A necessidade da construção de um vínculo e aproximação, mesmo que por telefonemas realizados a cada 48 horas, conforme protocolo ou em outros casos com um tempo menor de retorno (24 horas), devido à percepção de uma maior gravidade do usuário monitorado, se tornaram indispensáveis para um melhor prognóstico decorrente do agravo.
Os dois casos aqui relatados envolvem a morte de pessoas e para qualquer profissional “perder” exige resiliência, visto que a morte de um usuário acompanhado nos põe diante da possibilidade de nossa própria finitude e da vulnerabilidade de todo o ser humano. Os sentimentos vivenciados pelos profissionais de enfermagem, diante a pandemia, podem ser expressos com maior prevalência de emoções de caráter negativo, caracterizadas por fadiga, desconforto e desamparo, além de medo, ansiedade e preocupação com pacientes e seus familiares, sintomas depressivos, angústia e insônia também acometem estes profissionais. Por sua vez, emoções positivas são mais perceptíveis em profissionais detentores de um maior autocontrole, auto-reflexão, responsabilidade profissional, cognição racional, atos altruístas e apoio da equipe.15
A tarefa do profissional, além de prover o restabelecimento e o bem-estar dos usuários, acometidos por enfermidades, estende-se aos seus familiares por meio da escuta e do acolhimento diante da dor. Apesar da satisfação obtida do cumprimento de todos os passos do protocolo e da tomada de ações adequadas dentro do fluxo estabelecido, o sentimento de dever cumprido foi sobreposto pela sensação de impotência e receio do desconhecido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apresentou-se, neste estudo, um relato de experiência vivido por duas enfermeiras atuantes na ESF diante do monitoramento de usuários diagnosticados com SARS-CoV-2. Submergiram das reflexões aspectos sobre o isolamento social, a exclusão social dos usuários contaminados e os sentimentos de insegurança, medo e sobrecarga por parte dos profissionais de enfermagem.
Observa-se que por mais técnico que o profissional seja as questões emocionais e sociais no contexto gerado ganharam destaque nas experiências vivenciadas. Atentar para sinais e sintomas físicos e orientar a adequada conduta, foram somados à necessidade de verbalizar e manejar situações emocionais de extrema dor e sofrimento dos usuários.
Entende-se que se trata de um momento atípico na história da humanidade, que atingiu diretamente o campo da saúde e os trabalhadores da área. Na enfermagem, especificamente atuante na atenção básica, o cuidado dispensado via telefone ganha destaque e relevância no processo de reestabelecimento do usuário. Porém, não se deve obliterar o sofrimento dos profissionais frente às mudanças repentinas da forma de assistir, visto que são seres humanos e que compartilham das mesmas angústias e medos dos usuários.
Assim, diante dessa situação nova e desafiadora se espera que aqueles responsáveis pela gestão e coordenação do processo de enfrentamento ao Covid-19 tenham um olhar empático, humanizado e acolhedor em relação aos profissionais, de modo que não seja apenas ofertada estrutura física e tecnológica para dispensação do cuidado, e sim recurso e apoio emocional para que, ao final, seja viável contar com profissionais saudáveis e capazes da execução suas atividades.
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Data de submissão: 29/10/2020
Data de aceite: 11/12/2020
[1] Enfermeira. Mestre em Saúde e Comportamento. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: xenia.monfrim@bol.com.br https://orcid.org/0000-0001-5351-6201
[2] Enfermeira. Doutora em Ciências. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: dessa_h_p@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-6448-2166
[3] Discente do curso de Ciências Sociais. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: jeske.experience@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-6751-1310
[4] Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail:vandarmjardim@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-8320-4321
[5] Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: celmira_lange@terra.com.br https://orcid.org/0000-0003-4410-2124
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