Guedes AC, Kantorski LP, Riet HS, Olschowsky A, Magni CT, Moreira JC. A trajetória terapêutica de um usuário de saúde mental. J. Nurs. Health. 2020;10(2): e20102005

https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/17080/11466

ARTIGO ORIGINAL

A trajetória terapêutica de um usuário de saúde mental

The therapeutic trajectory of a mental health user

La trayectoria terapéutica de un usuario de la salud mental

Guedes, Ariane da Cruz[1]; Kantorski, Luciane Prado[2]; Riet, Helena Strelow[3]; Olschowsky, Agnes[4]; Magni, Cláudia Turra[5]; Moreira, Josiane da Costa[6]

RESUMO

Objetivo: descrever a trajetória de uma moradora de um Serviço Residencial Terapêutico, à luz da Antropologia do Dom. Métodos: trata-se de pesquisa qualitativa, descritiva e analítica, realizada em um município do Rio Grande do Sul. Foi realizada observação livre, entrevista semiestruturada e coleta de dados do prontuário da moradora. Foram utilizadas, também, informações do Projeto Terapêutico do Serviço Residencial Terapêutico. Resultados: esta trajetória de vida leva à reflexão do valor que é dado ao ser humano, sendo que esse é modificado com o decorrer do tempo, dependendo do contexto e do pano de fundo histórico-social. Conclusões: percebem-se mudanças no tratamento e na trajetória construída pela moradora depois de residir no residencial, pois trilhou novos caminhos e ampliou suas redes sociais.

Descritores: Saúde mental; Serviços de saúde mental; Desinstitucionalização

ABSTRACT

Objective: to describe the therapeutic trajectory of a resident of a therapeutic residential service, in the light of the Anthropology of Dom. Methods: this a descriptive and analytical qualitative research, took place in a municipality of Rio Grande do Sul. Free-form observation was performed, a semi-structured interview and data collection from the resident’s medical records. information from the therapeutic residential service therapeutic project was also used. Results: this life trajectory leads to the reflection of the value that is given to the human being, which is modified over time, depending on the context and the historical-social background. Conclusions: changes in the treatment and the trajectory built by the resident after residing in the residential are perceived, as they have taken new paths and expanded their social networks.

Descriptors: Mental health; Mental health services; Deinstitutionalization

RESUMEN

Objetivo: describir la trayectoria terapéutica de un residente de un servicio residencial terapéutico, a la luz de la Antropología de Dom. Métodos: este es una investigación cualitativa descriptiva y analítica, tuvo lugar em un municipio de Rio Grande do Sul. Se realizo una observación de forma libre, con, una entrevista semiestructurada y la recopilación de datos de los registros médicos del residente. también se utilizó información del proyecto terapéutico del servicio residencial terapéutico. Resultados: esta trayectoria de la vida lleva a la reflexión del valor que se Le da al ser humano, que se modifica con el tempo, dependiendo del contexto y el contexto histórico-social. Conclusiones: se perciben cambios en el tratamiento y la trayectoria construida por el residente después de residir en el servicio residencial terapéutico, ya que han tomado nuevos caminos y ampliado sus redes sociales.

Descriptores: Salud mental; Servicios de salud mental; Desinstitucionalización

INTRODUÇÃO

Inspirado pelo movimento de desinstitucionalização italiano, a Reforma Psiquiátrica no Brasil possibilitou a evolução na forma de percepção do sofrimento psíquico. Contrapõe uma lógica manicomial de controle do tempo e da mente dos indivíduos e evidencia a reabilitação psicossocial como um novo modelo na configuração do cuidado em saúde mental.¹

O movimento da reforma psiquiátrica aconteceu concomitantemente ao processo de democratização do país. A reformulação do sistema de saúde produziu mobilizações, discussões e negociações, possibilitando a aprovação da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) pela Lei nº 10.216/2001, que propôs a criação de práticas e serviços comunitários que substituíssem hospitais psiquiátricos.² A partir da aprovação da PNMS, os serviços de saúde mental passaram a compor uma rede estruturada com outros setores e a formular estratégias terapêuticas para determinado indivíduo, o que também contribuiu para uma heterogeneidade dos serviços.³

Entre os serviços supracitados está o Serviço Residencial Terapêutico (SRT), que funciona como um local de transição para um sujeito que viveu anos enclausurado se reestabelecer como um indivíduo com direitos e deveres. Tem como proposta o reaprendizado dessas pessoas para o conviver social e o resgate de suas habilidades cotidianas, como, higiene pessoal, alimentação, manuseamento financeiro, organização de seus pertences e do ambiente, andar na rua e socializar com outras pessoas. Essas residências devem estar localizadas em espaços urbanos, preferencialmente, e devem respeitar as particularidades, preferências e funcionamento dos seus residentes, funcionando como um espaço de reabilitação social destes indivíduos para a reinserção na sociedade.4

A partir do momento em que o sujeito com um sofrimento psíquico, que viveu muito tempo em instituições asilares tem a oportunidade de habitar a cidade e conviver na sociedade, como um cidadão de direitos e deveres, tornam-se realmente efetivas as transformações na assistência em saúde mental, pois é no cotidiano que a reabilitação psicossocial e a reinserção acontecem de fato.

A reabilitação psicossocial dos indivíduos de longa permanência institucional percorre intervenções e intersecções em diversos campos, porque a integralidade do cuidado não implica apenas na moradia e na desinstitucionalização, mas também, em ações de retomada da subjetividade e a constituição de uma nova identidade. Além de dar à estas pessoas a oportunidade de ser um cidadão de direitos com potencial de escolha. Neste sentido, o SRT desenvolve um trabalho de mediação para o reaprendizado das atividades da vida cotidiana e a interlocução com outros dispositivos da rede cuidado, o que é fundamental.5

Desta forma, a Antropologia do Dom pode contemplar as necessidades e constituições do indivíduo em sua integralidade. E quando se pensa em espaços de reconstrução do cotidiano, pode-se entender que uma parte considerável da moral e da vida permanece na atmosfera da dádiva, cuja  liberdade individual e coletiva, encobre a tripla obrigação, de dar, receber e retribuir, revelando que nem todos os valores materiais e imateriais da sociedade estão classificados, especificamente, nos termos de compra e venda. Muitas coisas que circulam na sociedade possuem um valor sentimental que vão além do seu valor venal, conjecturando a existência de valores que sejam apenas desse gênero.6-7

O conceito sobre a troca de dádivas foi descrito por Marcel Mauss em seu notório livro intitulado “Ensaio sobre o dom, forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, o qual foi publicado em 1924, ancorado no referencial teórico do antiutilitarismo. Este, após analisar um conjunto expressivo de material etnográfico sobre os habitantes do noroeste da América do Norte e da orla do pacífico, além de direitos e economias antigas, onde não existe o sistema financeiro, descobriu uma forma de intercâmbio sociocultural amparado em um complexo sistema de prestações e contraprestações, cuja fundamental característica era a troca de presentes.6

Contemporaneamente, a partir das ideias de Marcel Mauss, surgiu na Europa, mais especificamente na França, o Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais (em francês, M.A.U.S.S.). O termo M.A.U.S.S. tem dois sentidos propositais: um deles, realizar uma homenagem a Marcel Mauss, destacando o seu lugar na sociologia; e o outro é divulgar o potencial da teoria da dádiva e o seu caráter antiutilitarista, para fundamentar uma consistente crítica sociológica à doutrina neoliberal, buscando demonstrar ser um equívoco a ambição do pensamento econômico e utilitarista de evidenciar o mercado como variável central no estabelecimento da vida social.8

Antiutilitarismo, nesse estudo, é entendido como a capacidade de perceber o valor que o ser humano tem, além do que ele pode produzir, ou seja, é valorizar o indivíduo em sua essência, contemplando sua subjetividade. Nas sociedades complexas, as redes de usuários de saúde não são compostas apenas por indivíduos, mas também, por um conjunto de objetos invisíveis (símbolos, mitos, crenças, etc.) ou visíveis (dinheiro, medicamentos, alimentação etc.) que contribuem para criar a circulação de dons e o sistema de trocas.8

Nesse sentido, é de extrema importância que as pesquisas em saúde mental estejam comprometidas com a captação da subjetividade das relações de trocas e com o estabelecimento de vínculos entre os usuários e sociedade, incluindo família, amigos e a comunidade em geral, pois haverá relevância para o que realmente fará a diferença na vida dos indivíduos,  a autonomia e a independência. Assim, em virtude do arcabouço teórico das novas práticas em saúde mental, que contemplam a atenção psicossocial, surge a relevância em conhecer as trajetórias terapêuticas percorridas pelos usuários de saúde mental, pois através do conhecimento dos seus caminhos, pode-se perceber em suas histórias de vida, os avanços e desafios enfrentados pelos sujeitos no contexto da reforma psiquiátrica.

Portanto, este estudo tem o objetivo de descrever a trajetória terapêutica de uma moradora residente em um SRT, à luz da Antropologia do Dom.

MÉTODO

Este estudo caracteriza-se por uma pesquisa qualitativa, descritiva e analítica. Trata-se de um recorte da Pesquisa “Redes que reabilitam – avaliando experiências inovadoras de composição de redes de atenção psicossocial” (REDESUL), a qual foi financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Ministério da Saúde (MS) através do Edital Ministério de Ciência e Tecnologia-CNPq/CT-Saúde/MS-SCTIE-DECIT/33/2008.

O desenvolvimento deste estudo se deu em um SRT de um município do Rio Grande do Sul. A escolha do município se deu pelo fato de que nesta cidade a rede de saúde mental se encontra estruturada, permitindo o deslocamento do usuário pelos diversos dispositivos que a compõem.

A coleta de dados ocorreu durante três semanas no mês maio de 2010, e foi realizada com 20 moradores do SRT, dentre os quais, para fins deste artigo, elegeu-se uma, que será identificada com a sigla Ent. 1.

Primeiramente, foi realizada observação de forma livre da dinâmica de funcionamento do SRT e observação da moradora, com acompanhamento de diversos momentos do seu cotidiano, totalizando 700 horas de observação. Nas demais semanas, foi realizada a entrevista semiestruturada e a coleta de dados do seu prontuário, contemplando o seu histórico de acolhimento e a sua história de vida. Foram coletadas também informações do Projeto Terapêutico Singular da usuária do serviço.

Os princípios éticos foram assegurados conforme a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde.9 Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Pelotas, sob o parecer 073/2009, de 14 de janeiro de 2009.

A análise dos dados foi realizada em temáticas, esse tipo de análise desdobra-se em três etapas: pré-análise, exploração do material, e tratamento dos dados obtidos e interpretação.10 Para análise dos dados, foi resgatada a trajetória terapêutica de uma moradora do SRT, tendo como suporte, os dados extraídos da entrevista e do prontuário, o qual foi analisado a fim de complementar as entrevistas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A Reforma Psiquiátrica conduz à consolidação dos processos avaliativos que sejam sensíveis à apreensão dos movimentos de produção de subjetividades pautadas pelas singularidades, pelo escape ao modelo, pela inovação, pela superação dos padrões de normalidade, e que sejam potencializadoras e criativas de novos modos de existência, provenientes de movimentos de profissionais, usuários ou comunidades. Os novos dispositivos e serviços em saúde mental requerem a construção de novos modos de interferir, compreender, interpretar e avaliar a produção de subjetividades, já que o modelo manicomial é insuficiente para dar conta de captar as inovações criadas nesse contexto de novos objetivos.9,11

Nessas condições de mudança de práticas e de representações na assistência em saúde mental, surge a urgência em avaliar e estudar como se formam os laços que compõem a rede social dos usuários e a formação de vínculos. Sendo assim, uma maneira de realizar esse objetivo é por meio do conhecimento das trajetórias terapêuticas individuais de cada sujeito.

As trajetórias terapêuticas se definem como o conjunto de recursos de cuidados com a saúde, desde o surgimento de um problema ou doença até a sua cura, estabilização ou morte. Lenta ou bruscamente, perpassa da normalidade ao estado de doença, desencadeando um processo complexo, quanto à decisão do tipo de recurso a adotar, influenciado, não somente por fatores objetivos, mas também, pelas representações que interferem na explicação da patologia, na busca por determinado recurso e consequentemente nos itinerários em busca de assistência.12

A procura por serviços de saúde que atendam às necessidades dos usuários faz com que as trajetórias terapêuticas sejam realizadas de diversas formas. Então, compreende-se que o modelo de atenção à saúde propõe uma estruturação que permite que as trajetórias terapêuticas de cada sujeito sejam organizadas com clareza, para que este tenha discernimento de que caminho irá traçar para ser atendido no serviço com resolutividade e benefícios.13-14

Pode-se relacionar as trajetórias terapêuticas em consonância com as redes sociais. Os atores sociais (organizações, indivíduos) são compreendidos a partir de sua inserção em uma estrutura de rede social. A delineação posicionará o indivíduo num ambiente social, o que implicará em trajetórias biográficas individualizadas decorrentes de sua posição na estrutura social e também das experiências vivenciadas.8

Compreender essas trajetórias requer um movimento analítico retrospectivo apto para conferir coerência entre os atos praticados, na maioria das vezes de forma fragmentada, mas que fundamentam diferentes processos de decisões e escolhas. Analisar esses fatos implica em também considerar os discursos produzidos por eles, de forma não dissociada, evitando cometer dilemas epistemológicos e falsas dicotomias, que limitam a interpretação apenas aos resultados alcançados, ou seja, à resolutividade ou não apreendida na trajetória traçada, dissociando esses processos do mundo social.15

Trajetória terapêutica

A Ent. 1 é uma senhora de 48 anos, estatura média, pele negra, olhos e cabelos castanhos, cujo semblante expressa as marcas de uma vida sofrida. Em um primeiro momento, demonstrou-se arredia, evitando conversar com o pesquisador. Entretanto, com o passar do tempo, evidenciou ser uma doce pessoa, que demonstra seus sentimentos sem reservas, deixando transparecer um caráter amoroso e uma inteligência e sabedoria capaz de ver o mundo de outra maneira. Tem como característica marcante, a grande demonstração de cuidado e lealdade para com o seu companheiro, tornando o seu relacionamento um suporte para os desafios cotidianos.

Além da entrevista, por meio da leitura do seu prontuário, foi possível conhecer a sua história, desde o seu nascimento até a chegada no SRT. Ent. 1, nasceu em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul, até os 13 anos morou com a mãe na casa da avó materna. Após foi morar com os padrinhos em outra cidade do mesmo estado, de onde fugiu, parando em uma casa de prostituição. Trabalhou ainda em casas de família cuidando de crianças e como camareira em um hotel. Tornou-se etilista e aos 17 anos começou a apresentar transtornos mentais. Aos 18 anos teve uma tentativa de suicídio, teve dois abortos e com 23 anos foi submetida a uma histerectomia. A primeira internação psiquiátrica foi aos 28 anos, já, aos 31 anos voltou para sua cidade natal para morar com a mãe, em uma casa adquirida pelo irmão. Depois da morte de sua mãe foi morar com o irmão, mas por causa dos problemas causados pela sua presença, foi morar em um asilo em 1999. No asilo sofria uma série de privações e maus tratos. Em 2005, Ent. 1 passou a residir no SRT.

Percebe-se, pela visualização desta trajetória, que ao longo do desenvolvimento da vida da Ent.1, apresentaram-se várias situações difíceis, as quais contribuíram para que o sofrimento psíquico fosse apenas mais um fato em sua vida. Desde a sua infância até a fase de adolescência, teve a sua vida marcada por rupturas no relacionamento familiar, exposição moral e dependência química, fatos que podem ter contribuído para o desencadeamento do sofrimento psíquico e suas consequências.

Foi relatado no prontuário que a mesma perdeu o pai de forma violenta, repetidas vezes fugia de casa, tirava a roupa e andava nua pela casa. Demonstrava-se agressiva quando tinha crises, tendo sido internada em hospital psiquiátrico, cerca de quatro vezes por ano.

A dificuldade de convivência se tornou um empecilho para a família e Ent.1 passou a residir em um asilo. Na época, por intermédio da assistente social da Unidade Básica de Saúde, foram sugeridas três casas para ela residir, porém, somente em um dos locais foi possível o asilamento, devido a questões financeiras e também à aceitação do seu transtorno.

Sua última internação em hospital psiquiátrico fora em 30/01/01, sendo que já havia internado 25 vezes, perdendo, nesse processo, o convívio familiar e os vínculos sociais.

De acordo com a entrevista realizada com a Ent. 1, a sua vida, antes de desencadear o transtorno psíquico, era boa, pois relata que não “sentia nada” e não precisava ser internada. Comenta brevemente sobre a convivência com sua mãe e sobre as obrigações desta com o sustento da casa:

Morava a minha mãe e eu, mas a minha mãe me deixava só na casa, e ia cuidar de uma velhinha, trabalhar pra ganhar o pão pra nós, que nós não tínhamos ainda dinheiro. Daí ela ia trabalhar lá. Eu ganhava comida, a velhinha me dava. (Ent. 1)

Ao desenvolver esse estudo, atentando para cada detalhe de observação, a cada entrevista e convivência com esta moradora, percebeu-se  que o sofrimento psíquico não é um fato isolado na vida do ser humano, e que muito além do diagnóstico fechado que rotula e exclui este indivíduo, há outros fatores que contribuem para o desenvolvimento e agravamento do sofrimento psíquico, como a perda do convívio familiar e social.

Refere ter percebido que estava ficando doente quando começou a sair de casa sem rumo, indo viver na rua. E teve a experiência de sua primeira internação psiquiátrica aos 28 anos, no momento em que sua cunhada a encaminhou para uma instituição psiquiátrica.

A Ent. 1 menciona que, após a sua primeira internação, passou a residir na casa da mãe da sua cunhada:

Porque eu nunca mais andei na rua, achei a casa da minha cunhada, a minha cunhada me levou pra uma chácara. Eu convivia lá só com a mãe dela, sabe? Só eu e ela [...] Era bom, eu a ajudava a trabalhar, sabe? Eu trabalhava na pia, lavava louça, secava louça; no fim do mês, ela me levava até a cidade, na casa da minha cunhada, pousava lá. Ela recebia meu benefício e comprava cigarrinho, comprava erva, comprava comida pra nós comer e trazia pra cá. (Ent.1)

Quando questionada quanto às suas internações em hospital psiquiátrico, a Ent. 1 refere que teve 28 internações na Clínica Psiquiátrica, porém não desenvolve detalhes específicos de cada vivência, generalizando os fatos.

Porque os loucos pulam na gente. Eles me agrediam demais, me agrediam. Eu não... eu não sou de agredir ninguém [...]. Eu não agrido ninguém, mas eles me agrediam lá, sabe? Eles os acalmavam no colete, abaixo de soro. Claro, eles me agrediam, e eu não, né? Derrubavam eles no chão. (Ent.1)

Na fala anterior, esta moradora relata a violência que sofria dentro do hospital psiquiátrico pelos outros usuários, referindo que, mesmo não sendo agressiva, sentia-se ameaçada pelas outras pessoas. Na citação a seguir, esta refere à conduta tomada com esses pacientes pelos profissionais do estabelecimento.

Colete era um... [...] nem queira saber! Amarram eles assim, sabe? Os braços assim junto, amarram as pernas e levam lá pra um quarto e fazem soro lá. A coisa mais horrível! (Ent.1)

Outra questão colocada pela Ent. 1 refere-se à equipe médica da instituição psiquiátrica. Esta refere que no momento em que perguntou ao médico qual era o seu problema de saúde, este não quis lhe informar, negligenciando o seu direito de cidadã:

O doutor dizia que eu não estava bem, só pra ficar comigo lá, sabe? [...] Eu disse “oh doutor, o senhor pode me contar qual é o meu problema?” Ele dizia “não posso dá”, e a enfermeira dizia “não, ele não pode contar o problema pra você. Ele disse que não pode contar o problema pra você”. [...] Ele era falso. Os doutores são falsos, não vá atrás! Nem todos, porque eu já vi, já encontrei doutor bom. (Ent. 1)

Devido à sua experiência nesse contexto, esta refere que os “doutores” são falsos, evidenciando o seu desejo negado de participar de seu tratamento. Entretanto, afirma que já encontrou médicos bons, os quais a tratavam como participante e responsável pelo seu tratamento, levando em conta sua subjetividade.

O manicômio traduz toda forma de negligência e descaso com a humanidade do indivíduo. Na fala a seguir, presencia-se o abuso de poder por parte dos profissionais, quando estes trocam “favores” por carteira de cigarros:

Dizia assim pra mim: “hoje não é o dia da senhora sair daqui”, daí uma enfermeira lá, que era muito minha amiga, disse que eles mandavam a gente trabalhar assim, juntando papelzinho e folha pra elas me dá uma carteira de cigarro. E eu trabalhava, eu obedecia às ordens dela, sabia? Eu tomava banho, escovava dente, me secava... não precisava ninguém me secar. (Ent.1)

No âmbito do hospital psiquiátrico o “doente mental” assume seu papel de subserviência, dentro deste local prevalece a tutela e a punição. Daí surge a ênfase dada pela Ent. 1 quando refere que “trabalhava e obedecia às ordens”.

Menciona que após ter dado alta hospitalar, não tinha onde morar, então procurou ajuda com uma tia, e esta conseguiu um emprego de camareira em um hotel, para que ela pudesse trabalhar, sendo que permaneceu neste local por um ano e, logo após, aposentou-se:

Fui na casa de uma tia minha e disse: “tia X eu queria uma mão da senhora, eu estou na rua e não tenho pra onde ir e queria que a senhora me desse uma força, para arrumar um serviço, pra mim ganhar um dinheirinho e ganhar o pão”. “Daí ela disse: eu vou te arrumar sim [...] de camareira eu vou arrumar uma vaga pra você”. E ela arrumou uma vaga pra eu trabalhar lá [...] foi quando me aposentei, trabalhei um ano lá. (Ent.1)

Em relação à experiência vivenciada no Asilo, a Ent. 1 relata como era morar naquele local, e como foi a sua saída de lá:

Daí a assistente descobriu que ficavam maltratando-nos lá. [...] Levava 15 dias pra dá um banho em nós! Comida, nunca tinha, matando-nos lá de fome. Nunca tinha comida. [...]  Lá fora, é num sítio, não é aqui. É fora daqui. [...] Ah, era ruim. O meu irmão levava erva e cigarro, e não me davam. Ela dava o cigarro pro filho dela, que chamava X, e ficava com, com a minha erva. Tomava chimarrão, na minha cara [...]. Foi lá o brigadiano, vestido de brigadiano, com uma caminhonete branca da assistente social e me tirou de lá. (Ent.1)

O asilo onde a Ent. 1 viveu, promoveu a negação dos seus direitos individuais, colocando-a em extrema situação de risco e violência, indo contra a vida em seu sentido mais amplo. Após a saída do asilo, os moradores foram para uma casa temporária:

Trouxeram nós ali pro bairro X [...] é um casarão, um casarão. [...] Morava todos nós lá. (Ent.1)

Permaneceram neste local por dois meses, enquanto era estruturado SRT. A partir de então, a Ent. 1 passou a residir no SRT:

Daí eles me trouxeram pra ali, de lá. [...] Ali pro Residencial. [...] E depois fizeram uma casa particular pra nós. (Ent.1)

O ingresso no SRT é visto pela Ent. 1 como uma mudança no rumo de sua vida:

Mudou muito viu? [...] Eu fui bem recebida, sabe? Os enfermeiros me trouxeram aqui e me mostraram: “Oh Ent. 1”, compraram o nosso quarto [...] Porque aqui eles são bons pra mim. Só o meu marido que às vezes briga comigo, mas nós sempre nos entendemos. (Ent.1)

Percebem-se mudanças efetivas que ocorreram em sua vida após a desinstitucionalização, a possibilidade de ter um lar, de ampliar seu espaço de viver, de convivência em sociedade, essa nova rotina de vida potencializa as trocas sociais e a circulação de dons, dando cor e sentido aos dias vividos pela Ent.1.

No manicômio, inúmeros indivíduos são privados do convívio social e do exercício da sua cidadania. Perdem o que o sujeito tem de mais valioso na sua existência, o seu direito de ir e vir, de escolhas, a sua liberdade.4 Denominados de “loucos”, “doentes mentais”, “doidos”, entre outros, no contexto onde estão inseridos, evidenciam como determinados segmentos sociais os percebem. A partir da Reforma Psiquiátrica são denominados de usuários, pois entende-se que são protagonistas no processo de constituição e efetivação do Sistema Único de Saúde.²

Embora as propostas da Reforma Psiquiátrica sejam avaliadas positivamente pela maioria dos atores envolvidos, familiares demonstram insatisfação e sobrecarga no que refere a falta de iniciativa e independência e no momento em que o indivíduo não conta com o suporte familiar, ou quando este é insuficiente, pelo fato de a família não saber lidar com as questões do transtorno mental, o sofrimento deste se intensifica devido às dificuldades em encontrar apoio e compreensão.16

O modelo manicomial objetiva e verticaliza o cuidado, demonstrando uma relação de poder autoritária, que exclui o sujeito nesse processo. O aspecto principal das instituições totais pode ser definido como a ruptura das barreiras que comumente separam as três esferas que fazem parte da vida: ‘dormir, brincar e trabalhar.’17

Sendo assim, todos os aspectos da vida são desenvolvidos no mesmo local, sob uma autoridade única. E cada uma dessas atividades diárias é realizada na companhia de um grupo extenso de pessoas, as quais são todas tratadas da mesma maneira, e obrigadas a fazerem tudo em conjunto. E por fim, essas atividades são rigorosamente instituídas em horários preestabelecidos, formado por um sistema de regras formais explícitas, subjugando o poder aos funcionários. A organização dessas atividades tem a finalidade de atender aos objetivos da instituição.17

O estabelecimento de vínculos sociais e a convivência em sociedade ainda é enfraquecido devido aos estigmas atribuídos às pessoas com transtornos mentais, resquícios do processo manicomial. Assim, outros atributos são irrelevantes e acabam sufocados, uma vez que o foco é direcionado apenas para o transtorno e as limitações que ele pode trazer, e não as potencialidades do indivíduo  Nesse sentido, o cuidado em saúde mental é composto de uma intrínseca articulação entre a rede de saúde, seus profissionais, os usuários e seus familiares, levando em conta as individualidades de cada contexto social, econômico e cultural.18 Para que sejam efetivas as ações em saúde mental é necessária uma transformação que vai muito além das necessidades de saúde, dando sentido a reabilitação psicossocial em sua essência, trazendo uma modificação no contexto sociocultural que permeia as questões de saúde mental.

Com o advento da reforma psiquiátrica, as estratégias solidificadas pelos diversos serviços substitutivos ao modelo manicomial foram muito importantes para a reconstrução da dignidade e autonomia de cada indivíduo em sofrimento psíquico, dando a estes a possibilidade de construir uma nova história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste momento, cabe tecer algumas palavras que possam expressar a intensidade deste estudo, o qual está inserido no contexto de transformações na assistência em saúde mental, tendo como protagonista uma moradora de um SRT. A história de vida e trajetória terapêutica aqui exposta levam à reflexão sobre o valor que é dado ao ser humano, sendo que esse é modificado com o decorrer do tempo, dependendo do pano de fundo histórico-social em que se apresenta.

Anteriormente aos movimentos que levaram à reforma psiquiátrica, os indivíduos em sofrimento psíquico dispunham de cuidados apenas dentro das instituições manicomiais, e com isso foram segregados e excluídos socialmente, sofrendo todo tipo de violência, o que levou à cronificação e à perpetuação do estigma.

Entretanto, a partir do movimento de reforma psiquiátrica, foram instituídas leis que reorientaram a assistência em saúde mental, priorizando o cuidado em liberdade e territorializado, a partir dos serviços substitutivos. Nesse sentido, como estratégia de suporte aos usuários de saúde mental que permaneceram institucionalizados por um longo período, sem contarem com apoio familiar e comunitário quando saíram do hospital psiquiátrico, foi criado o SRT, a fim de lhes proporcionar moradia.

Com base nos dados da entrevista e das informações do prontuário individual, verifica-se uma diferença e transformação de vida no tratamento e na trajetória construída pela moradora antes e depois de residir no SRT, pois enquanto viveu institucionalizada, não contava com uma rede social e, em alguns momentos, sofreu violência moral e física, anulando seus direitos enquanto cidadã. A partir do momento em que foi residir no SRT, em liberdade, percebe-se que esta desenvolveu novas trajetórias terapêuticas e ampliou suas redes sociais, as quais eram praticamente inexistentes.

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9 Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 196, de 10 de outubro de 1996: aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. [Internet]. 1996[acesso em 2020 jun 06]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/res0196_10_10_1996.html

10 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec;2014.

11 Amarante P, Nunes MO. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Cien Saude Colet [Internet]. 2018[acesso em 2020 maio 30];23(6):2067-74. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v23n6/1413-8123-csc-23-06-2067.pdf

12 Cabral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade EG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet [Internet]. 2011[acesso em 2020 maio 30];16(11):4433-42. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v16n11/a16v16n11.pdf

13 Massa PA, Moreira MIB. Vivências de cuidado em saúde de moradores de serviços residenciais terapêuticos. Interface (Botucatu, Online). [Internet]. 2019[acesso em 2020 maio 31];23:e170950. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/icse/v23/1807-5762-icse-23-e170950.pdf

14 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011: institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. [Internet]. 2011[acesso em 2020 jun 06]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html

15 Serapioni M. Franco Basaglia: biografia de um revolucionário. Hist. ciênc. saúde-Manguinhos. [Internet]. 2019[acesso em 2020 maio 31];26(4):1169-87. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/hcsm/v26n4/0104-5970-hcsm-26-04-1169.pdf

16 Vasconcelos MGF, Bezerra IC, Paula ML, Pereira SS, Meneses KV, Jorge MSB. Cuidado em saúde mental no centro de atenção psicossocial sob o olhar da família. Rev. Pesqui. (Univ. Fed. Estado Rio J., Online). [Internet]. 2020[acesso em 2020 maio 31];12:485-91. Disponível em: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/8550/pdf_1

17 Miranda, HC. Foucault e Goffman: em torno de instituições e poderes. Sapere aude [Internet]. 2017[acesso em 2020 maio 31];8(16):381-94. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/download/P.2177-6342.2017v8n16p381/12757

18 Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva; 2019.

Data de submissão: 15/01/2020

Data de aceite: 05/06/2020

Data de publicação: 08/06/2020



[1] Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: arianecguedes@gmail.com http://orcid.org/0000-0002-5269-787X

[2] Enfermeira. Doutora em Enfermagem Psiquiátrica. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: kantorski@uol.com.br http://orcid.org/0000-0001-9726-3162

[3] Psicóloga. Mestra em Ciências. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: helenarietpsico@gmail.com http://orcid.org/0000-0001-5820-5242

[4] Enfermeira. Doutora em Enfermagem Psiquiátrica. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: agnes@enf.ufrgs.br http://orcid.org/0000-0003-1386-8477

[5] Antropóloga. Doutora em Antropologia Social e Etnologia. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: clauturra@yahoo.com.br http://orcid.org/0000-0002-3478-7708

[6] Psicóloga. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: cm.josi@hotmail.com http://orcid.org/0000-0002-2460-6694





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