Volz PM, Stofel NS, Souza JMM, Bruck NRV. Histórias de vida de mulheres frequentadoras das oficinas de geração de trabalho e renda. J. nurs. health. 2020;10(1):e20101004

https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/16247

ARTIGO ORIGINAL

Histórias de vida de mulheres frequentadoras das oficinas de geração de trabalho e renda

Life stories of women attending generation of labor and income workshops

Historias de vida de mujeres que asisten a talleres de generación del trabajo y ingreso

Volz, Pâmela Moraes[1]; Stofel, Natália Sevilha[2]; Souza, Joana Marques Maia[3]; Bruck, Ney Roberto Váttimo[4]

RESUMO

Objetivo: conhecer as histórias de vida de quatro mulheres participantes de oficinas de geração, trabalho e renda. Métodos: a coleta de dados foi realizada no ano de 2012 e incluiu quatro mulheres que, entre 2010 e 2012, participavam ativa e diariamente das oficinas de Geração de Trabalho e Renda propostas pela Reabilitação Trabalho e Arte, no sul do Brasil. O método foi história oral de vida. Resultados: as histórias coletadas articulam elementos comuns pertencentes à vida das mulheres pertencentes aos grupos populares – a necessidade de parar de estudar para trabalhar e ajudar no sustento da casa; o casamento como ferramenta de libertação e rito de passagem para a vida adulta, e; o papel feminino relacionado ao cuidado e o masculino de provimento. Considerações Finais: as dinâmicas regidas por obrigações morais de reciprocidade orientaram e atribuíram significado as relações estabelecidas com a família e com a sociedade.

Descritores: Saúde mental; Identidade de gênero; Rede social.

ABSTRACT

Objective: to get to know life stories of four women who take part on creation of labor and income workshops. Method: data collection was carried out during 2012, and included four women an active part of the Creation of Labor and Income workshops, as proposed by Rehabilitation, Work and Art, in the south of Brazil. The method chosen was oral life history. Results: the stories collected articulate common elements that belong to women living in poor strata - the need to stop studying in order to work and help proving for the family; marriage as way of freedom and a rite of passage into adult life; and the female role towards caring, and male role towards providing. Final considerations: dynamics that are ruled by moral obligations of reciprocity have guided and provided meaning to relationships established with family and society.

Descriptors: Mental health; Gender identidy; Social networking.

RESUMEN

Objetivo: conocer la historia de vida de cuatro mujeres que participan de los talleres de generación del trabajo y renda. Métodos: los datos se recopilaron en 2012 e incluyeron cuatro mujeres que participaron de manera activa y diaria en los talleres de generación del trabajo e ingreso, en sur del Brasil. El método utilizado fue la historia oral de vida. Resultados: las historias recopiladas articulan elementos comunes relacionados con la vida de las mujeres pertenecientes a los grupos populares: la necesidad de dejar de estudiar para trabajar y ayudar a mantener el hogar; el matrimonio como herramienta de liberación y rito de paso a la edad adulta, y; El papel femenino relacionado con la atención y el papel masculino de la provisión. Consideraciones finales: la dinámica regida por obligaciones morales de reciprocidad guió y atribuyó significado a las relaciones establecidas con la familia y con la sociedad.

Descriptores: Salud mental; Identidad género; Red social.

INTRODUÇÃO

A importância da tríplice obrigação (dar, receber e retribuir) é trazida a cena através da análise de narrativas de mulheres pertencentes a famílias de grupos populares. Estudos pautados nestas relações buscam ilustrar e dar sentido as vivências narradas, para além de uma leitura com viés estritamente econômico. Sugerem pensar as positividades das formas de sociabilidade observadas, de forma que contemplem seus “modos de vida como fenômeno histórico, fruto de determinadas circunstâncias econômicas e políticas, e que dê prova da criatividade de indivíduos agindo em sociedade”.1:37

Nesse sentido, toma-se por família a concepção que permite vislumbrar outras formas de convivência e organização, outros acordos e arranjos familiares, que possam, em dado momento, opor-se aos modelos hegemônicos, mas que igualmente dão sentido ao parentesco, à consanguinidade e ao pertencimento.2

Entende-se ainda por família, a instância na qual: a divisão sexual do trabalho, a regulação da sexualidade, a definição de papéis, as relações de poder e a construção social dos gêneros; encontram-se enraizadas.3-4 Nesse sentido, destacam-se os valores tradicionais como característica das dinâmicas familiares de grupos populares, estando as suas relações pautadas num código de lealdades, confiança e obrigações mútuas e recíprocas, tendo como pano de fundo o trabalho, a moralidade e a hierarquia.5

Defende-se, portanto, que a análise da atuação dos sujeitos nas famílias de grupos populares seja direcionada para as relações de reciprocidade que estabelecem e para o enfrentamento de situações adversas que ameaçam a saúde, a estabilidade e a reprodução do grupo. Isso porque, nesse universo, não há relações com parentes consanguíneos ou não, se com eles não for possível dar, receber e retribuir, três obrigações essenciais que compõem este universo moral fundado no princípio da reciprocidade.1-2

Este trabalho teve por objetivo conhecer as histórias de vida de quatro mulheres participantes de oficinas de geração de trabalho e renda.

MATERIAIS E MÉTODOS

O estudo tem abordagem qualitativa e a escolha pela história oral de vida6 como método de análise se justifica porque esta não representa apenas uma técnica ou um procedimento, mas parte de narrativas de quatro mulheres que, ao evocarem a memória para a transmissão do vivido,7 refletem sobre as relações que estabeleceram ao longo da vida com a família e com a sociedade.

Trata-se, portanto, de uma importante fonte de apreensão da história pessoal, a qual, por sua vez, encontra-se inserida no social.8 Ao dar voz às usuárias, acabou-se conhecendo a realidade passada (passado remoto) e presente (do momento da captação das informações) de acordo com os seus pontos de vista, e, além disso, forneceu-se um espaço para que elas falassem e escutassem suas próprias vozes.7

A escolha das quatro mulheres ocorreu por intermédio da participação da pesquisadora, durante o mestrado, nas oficinas de geração de trabalho e renda da Reabilitação Trabalho e Arte (RETRATE). A seleção deu-se na identificação por parte de uma das pesquisadoras, das usuárias que participavam diária e ativamente das oficinas de costura e artesanato e representavam a RETRATE nas reuniões da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (INTECCOP) Pelotas e nas feiras de artesanato espalhadas pela cidade de Pelotas. Conforme estudo pautado na sociologia da vida cotidiana,9 a RETRATE era considerada uma segunda família para as entrevistadas.

As entrevistas foram realizadas na casa das quatro mulheres e tiveram duração aproximada de quatro horas. Para garantir a cientificidade do método e da ética do estudo, no decorrer das entrevistas (as quais foram previamente agendadas, tomando como base os dias e horários disponíveis pelas usuárias) os objetivos da pesquisa foram expostos e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi apresentado de forma que as usuárias pudessem lê-lo e, posteriormente, assiná-lo.

Após transcrição das entrevistas, a pesquisadora retornou à casa das mulheres, leu o documento gerado, solicitando novamente autorização para publicação das falas. Os nomes das usuárias, não se tornaram públicos, conforme acordo previamente estabelecido. Elas foram denominadas pelas pesquisadoras nas entrevistas, como deusas gregas: Hera, Atena, Artemis, Héstia.

A análise do conteúdo se deu ao longo de todo o processo de pesquisa, ou seja, desde a transcrição até a interpretação final. Para tanto utilizou-se a proposta operativa de Minayo, que ocorreu em três etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento e interpretação dos resultados obtidos.10

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Pelotas (Parecer nº 02/2012, de 08 de fevereiro de 2012), em conformidade com a Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados e a discussão serão apresentados a partir de quatro categorias temáticas. As relações estabelecidas na infância e adolescência; Relações estabelecidas durante o casamento; A maternidade; Relações estabelecidas com o mundo do trabalho.

As relações estabelecidas na infância e adolescência

No que concerne à infância das usuárias entrevistadas, o que se destaca é que, para prover o sustento da família, foi necessário que os pais trabalhassem arduamente (seja na zona rural, seja na zona urbana), mas que os filhos também se empenhassem, muitas vezes parando de estudar para conviver com as preocupações próprias dos adultos e ajudar na renda familiar.

Com exceção de Artemis, que não precisou trabalhar na infância (e só parou de estudar devido à escolha que sua mãe mandou que ela fizesse entre a escola ou o namorado), todas as demais tiveram que abdicar dos estudos para auxiliar no sustento familiar.11 Assim, é apropriado enfatizar que foi o desempenho recíproco de suas obrigações que deu sentido a estas relações.

[...]. Nós viemos para a Dom Joaquim e na Dom Joaquim eu trabalhei de servente de pedreiro com meu pai. Eu tinha o quê? 8 ou 10 anos, e trabalhei até os 15 anos com meu pai. [...] A relação do pai e da mãe era boa porque a gente tinha vaca – porque tinha leite –, tinha porco, tinha cavalo. A gente era pobre sim [...] mas a gente tinha essas coisas [...] para sobreviver. A mãe plantava muita verdura [...] a gente tinha um pouquinho de cada coisa para sobreviver – os seis irmãos e mais o pai e a mãe – [...]. Naquela época a vida era muito mais difícil do que agora, com toda a certeza. (Hera)

Comecei a trabalhar com 14 anos, minha mãe costurava também, ela era agricultora, mas costurava também. E eu com 6, 7 anos já ia para a máquina [...] E aí fui indo, com 14 anos eu já estava na máquina e costurava direto, e aí já comecei a trabalhar”. (Atena)

Com o trabalho assumindo papel de destaque no processo de socialização das usuárias, a escola precisou ser relegada a segundo plano, o que influenciou diretamente no fato de nenhuma das entrevistadas ter concluído o ensino fundamental.11 Porém, com exceção de Atena, que afirmou ter se arrependido de ter parado de estudar, dando ênfase aos cursos que ela fez na fase adulta para aperfeiçoamento em corte e costura, as demais não demonstraram o mesmo arrependimento.

[...] eu nunca gostei de estudar, nunca, nunca. Não foi opção minha largar os estudos, foi assim, quando eu estudava e eu quis namorar, a minha mãe mandou eu escolher: Ou tu namoras ou tu fazes o colégio. E eu, como gostava do meu marido saí do colégio. Aí não pude estudar. (Artemis)

Eu acho que me arrepender de largar a escola eu não me arrependi. Não sei se eu me arrependi ou não me arrependi, porque eu era uma pessoa assim, dentro da escola eu era quieta, então eu fazia tudo: copiava, fazia os exercícios. [...] eu não sei se eu tinha a cabeça meio fraca, eu não sei se eu precisava de alguma vitamina, sei lá. Porque eu sei que eu saia da sala de aula e eu não sabia nada [...]. (Héstia)

Como na época em que as entrevistadas eram crianças a comercialização e o consumo não eram tão intensos quanto na atualidade, predominavam os brinquedos confeccionados por elas ou pela própria família. Todavia, ao mesmo tempo em que esta conjuntura instigava a criatividade e proporcionava às crianças maior liberdade para brincar, também gerava sonhos, alguns, inclusive, mantidos vivos até hoje.

[...] nunca tivemos bonecas, quando pequenas. E isso sim, isso é bem marcante. Por que que eu tenho essas bonecas aí? [Referia-se as várias bonecas que estavam em cima da cama]. Por causa disso, aí eu... passava horas e horas brincando ali [brincando com as bonecas confeccionadas com sabugo de milho], e a mãe chamava para o almoço e eu nem te ligo. (Hera)

No que se refere à adolescência das usuárias, pouco foi dito pela maioria. Talvez isso se deva ao fato de que, apesar de ser considerada uma fase complicada (pois é quando a mulher passa a ter o controle sobre ela mesma e, sobretudo, sobre a sua sexualidade), ela não provoca um corte significativo em relação à infância, na medida em que a menina, para cumprir suas obrigações morais, desde muito nova já tem participação no trabalho e nas responsabilidades domésticas e familiares.4-5,12

Confirmando tal assertiva, Artemis foi a única que expôs seu comportamento no decorrer da adolescência, na medida em que as demais não tocaram no assunto, nem mesmo durante conversas informais ao longo das oficinas.

[...] o meu marido, que quando a gente namorou, eu tinha 12 anos. Inclusive a gente namorava escondido, porque se a minha mãe pegava era aquela surra de pau; horrível! Aí depois ele foi se embora para Porto Alegre e aí eu não queria mais saber dele por causa de outra guria aí; porque eu era muito ciumenta, sempre fui. Aí eu não quis saber mais dele, mas ele mandava carta [...] aí depois ele voltou de lá e a gente ia ao baile e ele queira ficar comigo e mandava os colegas dele dizer que ele ia me levar em casa. Mas eu dizia que não, como eu tinha ido sozinha eu ia voltar sozinha. Mas aí tinha sempre um guri que me tirava para dançar, então ele via que meu marido ia vim me tirar para dançar, ele corria e vinha primeiro, até que o meu marido conseguiu e, aí sim, aí a gente ficou namorando. Aí ele ficou de vim falar com a mãe dia 1º de janeiro de 1970 [...]; eu já tinha 14 anos nessa época [...]. (Artemis)

O valor-família, é o elemento fundamental para a determinação da identidade social dos seus membros.5,13-14 A ocorrência de relações de obrigação moral e de reciprocidade, consideradas essenciais para a perpetuação dos laços sociais em famílias de grupos populares, são observadas na definição de papéis, nas relações de poder e na construção social dos gêneros.3

Embora os universos acabem sendo conduzidos por normas morais distintas, nesses grupos a mulher continua sendo simbolicamente associada ao mundo da casa, enquanto o homem é associado ao mundo da rua. Esses princípios são considerados referência básica na construção da identidade social da mulher.12-13

No que diz respeito especificamente à relação estabelecida entre pais e filhos, destaca-se que, dentre as relações familiares, é ela a que apresenta o vínculo mais forte e as obrigações morais mais significativas, tendo como premissa básica o valor ideal do respeito pela classe etária.5,13 Na perspectiva dos pais, embora os filhos sejam os verdadeiros responsáveis pelo sentido dado ao seu projeto de casamento, fertilizando-o, cabe a eles uma retribuição que deve existir enquanto compromisso moral, quer auxiliando nos momentos em que o pai ou a mãe estão precisando, quer sendo um bom filho (ou seja, honesto e trabalhador).

Portanto, nas famílias de grupos populares, as crianças acabam perdendo suas regalias muito cedo; mais precisamente em torno dos seis ou sete anos, quando demonstram capacidade para repartir as obrigações familiares.5,15

As relações estabelecidas durante o casamento

O casamento,15 concebido pelas usuárias entrevistadas como um meio para que elas constituíssem sua própria família, torna-se o eixo que organiza todas as suas percepções biográficas. Ele configura-se como um espaço de liberdade, sempre em termo relativos, na medida em que se torna a alternativa mais plausível para pôr fim a momentos difíceis e árduos vivenciados na infância e na adolescência.5

Contudo, apesar da crença nutrida em um casamento feliz, esta acaba por não se configurar, e a se desfazer, no momento em que os seus maridos deixam de cumprir seu papel social, que é o de colocar comida dentro de casa e fazer com que a unidade doméstica e os membros de sua família sejam respeitados.12,16

A história de Hera é elucidativa neste sentido, pois no momento em que o marido desrespeitava a moral da família ao passar tanto o dia como a noite na rua (sem dar nenhuma satisfação), ou mesmo quando gastava todo o dinheiro que recebia com festas e bebidas, coube à usuária em questão assumir o papel de mãe e pai ao mesmo tempo.

Eu casei com 23 anos e criei os meus filhos abaixo de sacrifício, porque foi assim, o meu marido, estava pouco se importando o que tinha para os filhos, se tinha o que comer ou o que beber, ele comendo o resto não precisava comer [...]. Ele trabalhava sim, mas ele chegava e saía sexta-feira: sexta, sábado, domingo, segunda e ele ia chegar em casa terça-feira sem um tostão no bolso. (Hera)

Atinente a essa questão, a própria associação do homem com o mundo da rua pode vir a comprometer a complementaridade que deveria revestir o seu papel na casa.13 De certa maneira, pode-se dizer que no momento em que o homem é expulso da casa para cumprir seu papel social, ele acabará por constituir “redes de relações sociais paralelas e mono-sexuais que reforçarão a diferenciação de ethos”,13:235 e poderá assumir, inclusive, um papel agressivo e marginal. Assim, é possível que haja uma boa margem de tensão, conflito e perturbação, entre o homem e a mulher, em decorrência da própria dinâmica dessa diferenciação de gênero e obrigações morais.

Além disso, é interessante observar que a própria sexualidade aparece como uma dimensão contida ao projeto familiar, a qual só é legitimada no momento em que se inscreve num duplo código moral sexual, o qual está imbricado na lógica de uma relação complementar e recíproca entre o homem e a mulher.17 Ou seja, é a mulher que dá o seu corpo em retribuição ao homem, mediador entre ela e o mundo social, que lhe dá: a garantia de sua sobrevivência material e a respeitabilidade de uma condição familiar que a situa socialmente e lhe confere identidade.5

A prova de que a sexualidade é abalada nos momentos de quebra de reciprocidade entre o casal18 está contida no depoimento de Artemis. Embora a usuária em questão elogie o comportamento atual do marido para com ela e para com a família, ela não deixa de mencionar a falta de confiança, a mágoa sentida pelas suas atitudes do passado e, até mesmo, o ciúme, as brigas e as agressões.

Quando ela enfatiza o fato de que eles não se separam da cama, ela não está se referindo estritamente ao ato sexual (pois este deixa de acontecer nos momentos em que o conflito se instaura), mas ao espaço em que a relação de marido e mulher se estabelece. Portanto, ao que consta, no momento em que, além da traição, o marido de Artemis deixar de cumprir seus deveres familiares, eles irão se separar da cama e, consequentemente, o casamento acabará.

Claro que antes da morte do meu filho eu já tive depressão, porque o meu marido tinha uma mulher e aí quando eu descobri também entrei em depressão. Foi em 2000, 2002 [...] Mas quando eu descobri, ele a deixou de vez, né! Com o meu marido tudo mudou [...] a gente vive bem, vive como marido e mulher e tudo, mas eu qualquer coisinha eu brigo, porque eu sou muito desconfiada, então se ele chega mais tarde eu já falo e aquela coisa assim. É porque depois que acontece uma vez a gente fica com aquela coisa [...] eu não tenho aquela confiança que eu tinha antes. Mas nem um dia a gente se separou de cama. Eu descobri porque eu ouvi alguns comentários, né! [...] mas na mesma hora que eu descobri deu. Aqui tinha um galpão, tinha uma rede, e um dia eu enchi a cara dele de tapa e ele não falou nada [...] ficou bem quietinho, e aí depois eu fui para o quarto, peguei uma faca, botei embaixo do travesseiro. [...] então ele me viu e se deitou no quarto com as crianças. E ele se mexia na cama e eu também, claro a gente não sabe o que pode acontecer. Aí depois ele se deitou na rede e não conseguia dormir. E aí ele foi lá para o quarto e a gente se perdeu conversando. Claro, ele ficou na cama, mas assim... eu não queria saber de nada com ele. Mas a gente nunca se separou, nem de cama a gente se separou, a gente briga e tudo, mas ele não sai da cama. (Artemis)

A importância de se ter um homem provedor – de abrigo, de sustento e de respeito,5,13 justifica, na maioria das vezes, a opção das usuárias por manterem o casamento durante anos. No caso de Atena, por exemplo, o casamento só se desfez no momento em que ela finalmente percebeu que não tinha mais sentido continuar investindo nessa instituição que se mostrava fragilizada social e moralmente.

Eu me casei com 19 anos e tive minha primeira filha com 20 anos. No início tudo foi às mil maravilhas, até nascer meu segundo filho. Quando nasceu meu segundo filho é que começou esse transtorno [...] porque o guri é bem loiro, branquinho mesmo, e aí ele foi dentro do hospital e disse que o filho não era dele. Aquilo me traumatizou muito, porque ele me disse: Esse filho não é meu, ele é branco, uma coisa assim. Mas ele é alemão para os dois lados, eu alemoa para os dois lados, como que o guri não ia nascer branco? Só porque a guria era mais morena, na verdade ela é loira que nem eu, só que o guri é branquinho [...]. E esse mais moço também tem o cabelo mais escurinho, não é tão loiro [...] E dali para cá começou aquela coisa [...] mas foi se levando [...] aí depois quando ele se aposentou e começou a ficar em casa direto, aí a gente brigava direto. Acho que enquanto ele trabalhava e a gente se via pouco, a coisa andava, não se tinha tempo para brigar tanto, né! Mas quando ele se aposentou as brigas eram direto. Ficamos casados 33 anos. (Atena)

Ainda sobre esse contexto em particular, é digno de nota que a opção pela separação não anulou a importância do marido na unidade doméstica.19 Hera e Atena, por exemplo, veem o arranjo familiar atual como provisório, pois, ao saírem para dançar, têm como principal objetivo encontrar alguém para dividir as responsabilidades do lar e lhes assumir enquanto mulher.

A maternidade

No que se refere especificamente à maternidade, se verifica uma lacuna entre a representação e a realidade dessa questão, pois embora a mesma se constitua como um elemento central para dar sentido ao projeto do casamento, bem como para a construção da identidade social das usuárias, nem sempre o que prevalece é uma relação recíproca e amistosa entre pais e filhos.20

Entretanto, para se entender o lugar das crianças nas famílias de grupos populares, é necessário distinguir entre as famílias que cumpriram as etapas do desenvolvimento sem rupturas (caso de Héstia), e aquelas que se desviaram neste caminho.5,21

Nos casos de instabilidade familiar, por separação, temos o depoimento da Hera:

Fiquei casada sete anos, mas depois dos sete anos não deu mais, porque ele era muito mulherengo – saía para zanzar, ia para baile, [...] e as crianças às vezes doentes e eu não sabia o que ia fazer [...]. Depois que eu os coloquei no Instituto, fiquei um pouco mais aliviada, porque ao menos eu sei que lá eles tinham todo o atendimento [...]. Quando o mais velho saiu do Instituto de menores foi outro dilema também [...]. Passei um trabalhão que nem sei! O que mais me acompanhou foi o mais velho, aonde eu ia, ele ia atrás. Eu com um saco nas costas de roupa e ele com ouro saco nas costas de roupa, parecia dois andarilhos pela rua. Quantas vezes nós dormimos na rua eu e ele. Eu passei muito trabalho, mas muito, muito trabalho! [...] Aí o pai nos cedeu uma casinha para morar. Um drama assim [...]. Nessa época o mais novo ainda estava no Instituto [...] mas depois que ele entrou nessa religião que é evangélica, ele entendeu. Mas o mais velho não entende até hoje [...], não tem jeito de entender, então eu não posso fazer nada. (Hera)

Especificamente sobre a decisão de Hera de deixar os seus filhos no Instituto de Menores, explica-se que ela se relaciona, de certa forma, com a circulação de crianças entre os grupos populares, ou seja, a entrega dos filhos a outros cuidadores.19,22 Para a autora, quando esse acordo entre a mãe que gere e a mãe que cuidará é estabelecido, fica subentendido que esta será uma questão temporária, e que mais cedo ou mais tarde a mãe de sangue voltará para buscar a criança, ficando claro para esta que existem duas referências: a mãe que ganhou e a “mãe que criou”, uma vez que são as situações de crise as responsáveis pelas idas e vindas das crianças nos grupos populares.19 No caso de Hera, as condições adversas, que lhe envolveram em todo o seu entorno social, definiram sua decisão em levar seus filhos para o Instituto de Menores.

Outro exemplo de relação de mãe e filhos fragilizada em função de separação é dado pela usuária Atena:

Os dois mais moços são mais próximos, porque a minha guria, quando nós nos separamos, ela ficou um bom tempo brigada comigo, ela não se dava comigo. Acho que nós ficamos um ano, mais de um ano assim, ela não falava comigo, ou então brigava o tempo inteiro comigo, coisa assim. Agora, faz um ano eu acho que a gente voltou a se dar, mas ela é assim, de vez em quando ela larga algumas piadas, ontem mesmo ela abriu a porta e me disse assim: Onde é que tu vais mãe? Vou para o baile. E ela foi e disse assim: Nem parece que ontem tu estavas morrendo e agora hoje tu vais para o baile; mas se tu morreres, não precisa me avisar, que eu não vou no enterro. (Atena)

Ao contrário das demais usuárias, Artemis foi à única que destacou que a relação com seus filhos ficou fragilizada a partir de sua última gravidez. Ela conta que fez de tudo para abortar, mas, como não conseguiu, entrou em depressão e evitou o filho por um bom tempo.

E aí quando a minha filha fez seis anos eu engravidei do mais moço. Só que eu passei tão mal dessa e da segunda gravidez; eu também passei muito mal porque eu tive hemorragia interna declarada, quase morri também, por isso eu não queria ter mais filhos. E aí eu engravidei do [quinto filho], e aí quem não aceitava a gravidez era eu. E eu fiz de tudo, tudo que tu possas imaginar para abortar, tudo. [...]. E daquele dia em diante eu chorava dia e noite [...] e não comia, fazia de tudo para abortar [...] E aí ele veio com oito meses de cesárea, porque aí eu queria fazer ligamento. Aí eu fiz a laqueadura e ele veio fora de tempo e eu nunca aceitei ele [...] E aí [depois de adulto] eu pedi perdão para ele [...] Aí meu filho, tu perdoa tudo que a mãe fez, mas era porque a mãe não sabia o que tava fazendo, mas a mãe te entende, a mãe te adora. E ele não falou nada, só sorriu. E aí dez dias depois [...] ele faleceu [...]. Ele se acidentou lá no presídio, ele se acidentou, com a própria arma dele, ele se acidentou com a própria arma e faleceu [...] eu me sinto culpada porque eu não queria e depois eu perdi logo ele, né! Mesmo eu sabendo que no fundo eu não tenho culpa, porque eu não tenho o poder de matar ninguém, mas mesmo assim, então eu me sinto culpada. (Artemis)

Acerca dessa transcrição, é válido destacar que a culpa sentida por Artemis não está relacionada somente a morte do filho anos após sua tentativa de aborto, mas também ao que é legal e moralmente imposto pela sociedade e pela igreja. A mulher que comete, ou tenta cometer o aborto, é vista como pecadora, egoísta, criminosa, insensível, entre outros atributos negativos. No entanto, o que não é avaliado nestas questões são as circunstâncias sociais e, muito menos, os fatores psicológicos e emocionais envolvidos.

Nesse sentido, não foi evidenciado que Artemis, passou a correr sérios riscos de morte a partir da sua segunda gestação e que na quarta gestação o seu marido lhe ignorou durante os nove meses, se mostrando totalmente contrário ao fato de terem mais um filho. Na quinta gravidez aconteceu o pior. O aborto não foi concluído, mas a culpa por ter tentado matar o filho a persegue.

Relações estabelecidas com o mundo do trabalho

Percebe-se a vulnerabilidade da família, quando centrada na figura do pai/provedor e na relação dessas mulheres com o mercado de trabalho, a qual esteve sempre relacionada à necessidade de subsistência da família.23 O baixo grau de escolaridade das mulheres, e a sua correlação com o espaço da casa, acabou determinando, na maioria dos casos, um trabalho com baixa remuneração e como extensão das atividades domésticas, como por exemplo: empregada doméstica, auxiliar de serviços gerais e costureira.

Ademais, pode-se constatar que, o espaço público acaba perturbando as mulheres e desencadeando crises nervosas.13 Ao serem associados à constituição mais sensível e mais nervosa da mulher, o desemprego e a consequente falta de dinheiro, a manutenção dos vínculos de trabalho e os problemas decorrentes da gravidez reforçam a ilegitimidade que cerca o trabalho feminino.

Enquanto eu estava casada, primeiro eu fazia flores, até duas, três horas da madrugada para vender [...] para a gente ter o que comer no outro dia. E levava meus filhos junto. Mas foi num ponto que eu digo, não, eu não posso ficar assim, digo, vou arrumar umas faxinas para fazer. Aí eu peguei, e disse assim, eu vou colocar os meninos no Instituto de Menores, durante o dia, e vou fazer faxina, depois da faxina, vou chegar de tardezinha e vou buscar eles. E foi isso o que eu fiz. Aí um dia o Padre João, que era de lá, disse assim para mim: Quem sabe tu deixas os guris toda à semana aqui e trabalhas e depois no final de semana tu vens buscar eles? [...] eu saí dali em prantos de choro, porque [...] isso de afastar os filhos da gente é ruim [...] Mas eu digo: [...] tudo bem, e eu fiz. Depois que os filhos já estavam no Instituto de menores, eu morei em Santa Vitória, porque eu fazia comida para os piões [...]. Eu fui para Santa Vitória nova, tinha trinta e poucos anos. Tinha me separado do meu marido e me convidaram [...] de lá vim vindo... de granja em granja... e vim vindo, vim vindo, até chegar em Pelotas. (Hera)

Quando eu me casei eu dei uma parada, eu costurava um pouco [...] porque nós tínhamos leiteria [...]e um pomar de pessegueiro muito grande também, e quando chegava na época de apanhar os pêssegos tinha que colocar uma galera para pegar os pêssegos. Então nessa época de apanhação de pêssego [...] era uma época em que eu não podia pegar quase costura, então fui deixando meio que de lado [...]. E aí depois de casados nós ainda moramos seis anos lá fora e aí a gente veio para cá. E aí quando eu vim para cá eu enfrentei direto a costura. Eu trabalhei muito tempo em casa e fazia facção para fora. Eles traziam cortadinho tudo e eu só fechava e eu trabalhava sob medida em casa. Eu fazia vestido de noiva, bordava e coisa assim [...]. A gente veio para cá zerado, nós compramos esse terreno aqui e era um chalé, e um chalé que já não era muito bom né! Aí o que eu tinha que fazer? Trabalhar, trabalhar e trabalhar [...]. (Atena)

Conforme os relatos acima, é possível perceber o significado do casamento enquanto amparo para essas mulheres que se encontram incluídas precariamente e numa condição social desfavorecida, reforçando, desse modo, o código de reciprocidade sempre presente. A divisão sexual de papéis na família, estabelecida pelo casamento, acaba por resultar num meio de vida. Portanto, diante das dificuldades materiais, a necessidade de dependência mútua é acentuada e se configura com a divisão de gênero e etária.2

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora se deva usar a cautela para aceitar tudo o que foi dito, como se diz, ao pé da letra, uma vez que a própria lógica da narrativa é um argumento contra isso, é possível observar a estrutura hierárquica de relações estabelecidas entre grupos populares, nos quais a mulher é associada ao mundo da casa e o homem ao mundo da rua e as obrigações morais de reciprocidade que regem as dinâmicas familiares das entrevistadas.

Nesse sentido, esta pesquisa possibilitou reconhecer a preocupação excessiva com os pais, com os filhos ou com o marido constituem o princípio através do qual as mulheres entrevistadas dão sentido ao mundo social, orientando e atribuindo significado as suas relações dentro e fora da casa. Entre as limitações mais importantes do estudo está a impossibilidade de generalização, em decorrência do pequeno número de mulheres entrevistadas.

Por fim, as relações de reciprocidade são evidenciadas pelas mulheres perpassando relações de gênero e de classe. Percebe-se um desequilíbrio na tríplice obrigação (dar, receber, retribuir), pois ao passo que a participação dessas mulheres nas oficinas se inicia pela necessidade de aumentar a renda familiar (dar), à medida que vão passando pelas fases da vida, aqui representadas pelas categorias temáticas, elas recebem cada vez menos e retribuem cada vez mais.

REFERÊNCIAS

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Data de submissão: 19/05/2019

Data de aceite: 20/02/2020

Data de publicação: 11/03/2020



[1] Cientista Social. Doutora em Ciências. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: pammi.volz@gmail.com http://orcid.org/0000-0002-8548-7190

[2] Enfermeira. Doutora em Ciências. Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). São Paulo (SP), Brasil. E-mail: naty.stofel@gmail.com http://orcid.org/0000-0002-5928-3477

[3] Discente do curso de Medicina. Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Rio Grande do Sul, Brasil.  E-mail: joanammsouza@hotmail.com http://orcid.org/0000-0001-6319-6977

[4] Graduado em Filosofia. Doutor em Psicologia. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rio Grande do Sul (RS), Brasil. E-mail: ney.bruck@ufpel.edu.br http://orcid.org/0000-0002-5697-1231





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