Patrimônio e Memória, hoje, tornaram-se sinônimos de vínculo social. Tal articulação, contudo, não é propriamente nova. As comunidades tradicionais sempre se inspiraram no passado para fundar significados culturais no presente; rotineiramente incorporaram objetos e lugares associados às suas memórias sociais e às narrativas que no-las criam e sustentam. E mesmo agora, em que as forças centrífugas da “globalização” ameaçam tragar as alteridades num caldeirão cultural homogêneo, as culturas locais, não obstante as diversas experiências da diáspora, continuam firmando-se em suas memórias sociais. O mesmo se dá nos velozes e conturbados contextos urbanos e metropolitanos. Patrimônio e memória, cada vez mais, enlaçam os sentimentos de pertencimento cultural das pessoas; cada vez mais, a definição do que pode ser incorporado e excluído do patrimônio e da memória social integra as táticas políticas de cerceamento e afirmação de identidades culturais.
Tomemos alguns exemplos. Em 1992, nacionalistas hindus, estribando-se em resultados de escavações arqueológicas, demoliram mesquitas na Índia, sob a justificativa de que elas se erigiram sobre os vestígios de seus legendários heróis. Sérvios e croatas, durante a guerra da Iugoslávia, destruíram-se não apenas com armas de fogo, mas também simbolicamente, cada qual demolindo os monumentos de seus respectivos oponentes. Durante uma das mais cruentas fases da guerra civil na Libéria, em 2003, o Museu Nacional local foi dilapidado. Em 2008, iniciaram-se os trabalhos de restauração do Museu, pois, na concepção do atual governo liberiano, a instituição testemunhava parte da política cultural e da memória oficial que o Presidente Ellen Johnson-Sirleaf planejou pessoalmente.
O passado, pois, é sempre confrontado: o patrimônio cultural e a memória social, mesmo em contextos de miséria ocasionados por guerra civil, englobam as deliberações e anseios públicos, como é o caso, hoje, em Serra Leoa. E mesmo que saiamos das paisagens despedaçadas pelas guerras civis, observaremos que as comunidades preocupam-se com as políticas de representação do patrimônio cultural. Os indígenas, no Brasil, exercem pressão crescente sobre arqueólogos e órgãos públicos, manifestando ansiedade quanto ao destino dos seus territórios, artefatos e aos usos do conhecimento arqueológico. Na Bolívia, os movimentos indígenas contra a exploração do gás natural pelas multinacionais inspiram-se em visões arqueológicas alternativas do passado, avessas às interpretações que os classificam como refratários à modernidade. Numa palavra, nos dias que correm, diversos grupos étnicos exigem o direito de gestão de seus patrimônios: os indígenas da América do Norte e do Sul, as feministas, os druidas e, até mesmo, os imigrantes da Era da “globalização” (New Age travellers, Resident Aliens).
Esses poucos exemplos, que poderiam ser multiplicados, mostram como patrimônio e memória são objetos de acirrada disputa, sendo periodicamente selecionados, re-selecionados, revisados, dispensados e, muitas vezes, deliberadamente destruídos. Patrimônio e memória, assim, não são meros suportes plácidos de refinamento apolíneo. Ambos incutem a noção de ancestralidade e legitimidade do poder, veiculam hierarquias de valores, idéias de bem e mal, de patriotismo, de lealdade, de fronteiras, de pertencimento, imprimindo nas memórias coletivas o que deve ser excluído e incluído, silenciado e esquecido.
Nossa revista pretende ser um fórum para debates desse quilate. Abre-se para a interlocução de estudiosos brasileiros e estrangeiros, cujas pesquisas norteiem-se pelas reflexões teóricas ou estudos de caso sobre patrimônio material e imaterial, mecanismos de gestão do patrimônio, memória social, organização de acervos, conservação e restauro; abre-se, ainda, para os pesquisadores engajados nas lutas pela preservação do patrimônio e que trabalham ao lado das comunidades. Inserida nas malhas da Internet, nossa revista intenta alinhavar uma rede que congregue pesquisadores e o público interessado nos debates sobre patrimônio e memória.